Data de publicação: 19/11/2024
Tribunal: TJ-MT
Relator: MARILSEN ANDRADE ADDARIO
(...) “Enfatiza que só registrou o menor por acreditar na paternidade, pois se soubesse da realidade, não teria assumido a paternidade do menor, o que demonstra que o reconhecimento voluntário da paternidade se deu porque foi induzido a erro pela genitora.” (...)
RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL – IMPROCEDÊNCIA – COMPROVADA A EXISTÊNCIA DE VÍNCULO AFETIVO – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO. O exame de DNA negativo por si só não é suficiente para desconstituir a paternidade registral quando constatada a existência de vínculo afetivo caracterizada pela posse de estado de filho. -
(TJ-MT - APELAÇÃO CÍVEL: 1000797-48.2022.8.11.0052, Relator: MARILSEN ANDRADE ADDARIO, Data de Julgamento: 22/11/2023, Segunda Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 23/11/2023)
Inteiro Teor
ESTADO DE MATO GROSSO
PODER JUDICIÁRIO
SEGUNDA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO
Número Único: 1000797-48.2022.8.11.0052
Classe: APELAÇÃO CÍVEL (198)
Assunto: [Relações de Parentesco]
Relator: Des (a). MARILSEN ANDRADE ADDARIO
Turma Julgadora: [DES (A). MARILSEN ANDRADE ADDARIO, DES (A). MARIA HELENA GARGAGLIONE POVOAS, DES (A). SEBASTIAO DE MORAES FILHO]
Parte (s):
[J. A. A. DE A. - CPF: *** (APELANTE), CRISTIAN MARCEL CALONEGO SEGA - CPF: *** (ADVOGADO), HANDERSON SIMOES DA SILVA - CPF: *** (ADVOGADO), F. A. de A. (APELADO), W. A. A. D. A. - CPF: *** (APELADO), F. A. DE A. (REPRESENTANTE/NOTICIANTE), MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO - CNPJ: 14.921.092/0001-57 (CUSTOS LEGIS)]
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos os autos em epígrafe, a SEGUNDA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, sob a Presidência Des (a). SEBASTIAO DE MORAES FILHO, por meio da Turma Julgadora, proferiu a seguinte decisão: RECURSO DESPROVIDO. UNÂNIME.
EMENTA
RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL – IMPROCEDÊNCIA – COMPROVADA A EXISTÊNCIA DE VÍNCULO AFETIVO – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO.
O exame de DNA negativo por si só não é suficiente para desconstituir a paternidade registral quando constatada a existência de vínculo afetivo caracterizada pela posse de estado de filho. -
R E L A T Ó R I O
EXMA. SRA. DRA. MARILSEN ANDRADE ADDARIO
Egrégia Câmara:
Trata-se de Recurso de Apelação Cível interposto por J. A. A. DE A. contra a sentença proferida na Ação Negatória de Paternidade c/c Anulação de Registro Civil, ajuizada em face de W. A. A. D. A. representado por F. A. DE A., a qual julgou improcedente a pretensão inicial (ID 186527727).
Inconformado com o deslinde do feito, a parte autora, ora apelante, interpôs o presente recurso alegando em suas razões recursais (ID 186527731) que em 08/09/2007 registrou o menor W.A.A.A., reconhecendo sua paternidade, por acreditar que o infante era seu filho em razão da confiança em sua relação à genitora.
Enfatiza que só registrou o menor por acreditar na paternidade, pois se soubesse da realidade, não teria assumido a paternidade do menor, o que demonstra que o reconhecimento voluntário da paternidade se deu porque foi induzido a erro pela genitora.
Aduz que dois meses após o nascimento do infante, o relacionamento chegou ao fim, tendo o apelante permanecido na cidade de Vilhena enquanto a genitora tomou ruma ignorado, motivo pelo qual ficou com a guarda dos dois filhos.
Afirma que cumpriu papel de pai e mãe dos filhos, sempre educando, alimentando e proporcionando estudo, porém, depois de algum tempo durante uma discussão por telefone, a genitora do menor teria lhe dito que não seria o verdadeiro pai do menor.
Sustenta que a partir daquele momento, sua vida e de sua família passou por verdadeiro revés diante de tal informação, motivo pelo qual no ano de 2018 realizou um exame de DNA, o qual confirmou que de fato o menor não era seu filho biológico.
Narra que diante do resultado do exame de DNA entrou em contato com a irmã da genitora do infante informando que o menor havia manifestado a vontade de com ela residir ou até mesmo com a sua genitora para ficar mais próximo de sua família verdadeira.
Menciona que após uma longa conversa, a tia materna do menor solicitou que o apelante fosse até a sua cidade deixar o sobrinho, pois entraria em contato com a genitora, o que foi feito, pois desde agosto de 2018 até a presente data o menor reside com a mãe.
Cita que no mês de agosto de 2022 procurou seu advogado solicitando informações, pois gostaria que o menor fosse registrado pelo verdadeiro pai, requerendo assim que fosse retirado o seu nome da certidão de nascimento do menor para que o verdadeiro pai pudesse registrar por se tratar de próxima a genitora e que hoje se encontra próximo do menor.
Alega que ao contrário do que entendeu o Ministério Público e juízo condutor do feito, a demanda não se trata apenas de interesse econômico, pois na realidade não foi observado que desde 2018 o menor está residindo com a mãe e próximo ao verdadeiro pai, com o qual nutre carinho e amizade como verdadeiro sentimento de pai e filho.
Assevera que o verdadeiro pai se encontra impossibilitado de registrar o filho, pois mesmo que fosse ajuizada uma ação de reconhecimento de paternidade, a mesma demoraria anos para ser julgada, motivo pelo a presente demanda é mais célere de resolver tal questão.
Afirma ainda que o menor nunca sentiu pelo apelante o amor paterno que sente hoje por seu verdadeiro pai, mesmo porque o convívio com o apelante nunca foi bom.
Por fim, defende que tem o direito de questionar a paternidade assumida por meio da presente ação, pois no direito de família é necessário levar em consideração a verdade material em detrimento da verdade formal.
Sob tais argumentos, requer o provimento do presente recurso para que a sentença para que a demanda seja julgada procedente para que o nome do apelante seja excluído do registro de nascimento do menor.
Sem contrarrazões.
A douta Procuradoria Geral de Justiça, em parecer da lavra da Dra. Naume Denise Nunes Rocha Muller, opina pelo desprovimento do recurso (ID 187751667).
É o relatório. -
V O T O R E L A T O R
VOTO
EXMA. SRA. DRA. MARILSEN ANDRADE ADDARIO
Egrégia Câmara:
Extrai-se dos autos que a parte autora J. A. A. DE A. ajuizou Ação Negatória de Paternidade c/c Anulação de Registro Civil em face de W. A. A. D. A. representado por F. A. DE A., aduzindo que 08/09/2007 registrou o menor W.A.A.A., reconhecendo sua paternidade, por acreditar que o infante era seu filho em razão da confiança em sua relação com a genitora (ID 186527708).
Na inicial (ID 186527708), alegou que acreditando ser o genitor do infante, reconheceu a paternidade e procedeu ao registro civil com base apenas na presunção de existência de vínculo biológico, tendo prestado ao menor todo auxílio necessário ao seu desenvolvimento.
Afirmou que cumpriu papel de pai e mãe dos filhos, sempre educando, alimentando e proporcionando estudo, porém 02 (dois) anos depois do término da vida em comum, durante uma discussão por telefone, a genitora do menor teria lhe dito que não seria o verdadeiro pai do menor.
Sustentou que diante de tal informação, procedeu à realização de exame de DNA em maio de 2018, o qual confirmou que de fato o menor não era seu filho biológico, motivo pelo qual entrou em contato com a irmã da genitora do infante informando que o menor havia manifestado a vontade de com ela residir ou até mesmo com a sua genitora para ficar mais próximo de sua família verdadeira.
Mencionou que após uma longa conversa, a tia materna do menor solicitou que o apelante fosse até a sua cidade deixar o sobrinho, pois entraria em contato com a genitora, o que foi feito, pois desde agosto de 2018 até a presente data o menor está residindo com a mãe e próximo ao verdadeiro pai, com o qual nutre carinho e amizade como verdadeiro sentimento de pai e filho, motivo pelo qual ajuizou a presente demanda requerendo a procedência da demanda com a, consequente, exclusão do seu nome do registro de nascimento do infante.
Após a instrução do feito, sobreveio a sentença de improcedência nos termos do relato.
Inconformada, recorre a parte autora, ora apelante.
Pois bem.
A declaração voluntária de paternidade compreende ato irrevogável, nos termos do que dispõe o artigo 1º da Lei nº 8.560/1992.
No entanto, o artigo 1.604 do Código Civil autoriza a retificação do registro de nascimento de forma excepcional quando comprovada a existência de vício de consentimento, vejamos:
“Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.”
Na hipótese dos autos, constata-se que o apelante tomou conhecimento de que era não o pai biológico do infante durante uma discussão com a genitora, o que o teria levado à realização de exame de DNA, o qual confirmou a inexistência de vínculo biológico, conforme exame anexado aos autos no ID 186527711.
Analisando detidamente os documentos que instruem os autos, verifica-se que o apelante tomou conhecimento de que não era o pai biológico do menor quando este já tinha de 11 (onze) anos, pois só realizou o teste de DNA no ano de 2018, ou seja, 09 (nove) anos depois de a genitora ter lhe dito que o menor não era seu filho, como afirmou em suas razões recursais e em sua inicial (ID 186527731 e ID 186527708).
Extrai-se ainda da petição inicial e das razões de apelação que o próprio apelante reconheceu a existência de laços de afetividade, pois afirmou que após o término da relação conjugal passou a exercer sozinho todos as responsabilidades para com os filhos, conforme trecho do recurso de apelação abaixo transcrito, vejamos (ID 186527731):
“[...] Em 08/09/2007, o Apelante reconheceu a paternidade sobre o menor W. A. A. de A., e o registrou no Cartório competente, comprovante no bojo dos autos, sem qualquer tipo de prova que comprovasse sua verdadeira paternidade. Apenas com base na presunção pater is est e na confiança em sua relação com sua convivente.
Dois meses após seu nascimento, os Apelantes se separaram de fato, ele permanecendo na cidade de Vilhena e ela tomado rumo ignorado, até entrar em contato com este advogado, por este motivo o Apelante ficou com a guarda de seus dois filhos.
O Apelante cumpriu o papel de pai e mãe dos filhos, sempre educando, alimentando e proporcionando estudo. [...].”
Ocorre que nas hipóteses em que há vínculo afetivo apto a configurar a existência da paternidade socioafetiva, a simples inexistência de vínculo biológico não autoriza a retificação do registro civil.
Isso porque, para que seja possível a retificação do registro de nascimento de forma excepcional, há que se comprovar o preenchimento cumulativo de três requisitos, quais sejam, a inexistência de vínculo genético, a caracterização do erro apto a configurar vício de consentimento e a inexistência de vínculo afetivo capaz de caracterizar posse de estado de filho.
Isso porque, a mera inexistência de vínculo genético e a caracterização do erro apto a configurar vício de consentimento não é suficiente para anulação do registro civil, pois a paternidade socioafetiva se sobrepõe à paternidade registral, por se tratar de elemento fundamental de identidade do ser humano.
Nesse sentido é o entendimento do STJ, vejamos:
“AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA DO REQUERIDO.
1. A Corte de origem dirimiu a matéria submetida à sua apreciação, manifestando-se expressamente acerca dos temas necessários à integral solução da lide, de modo que, ausente qualquer omissão, contradição ou obscuridade no aresto recorrido, não se verifica a ofensa ao artigo 1.022 do CPC/15.
2. "Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar, quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva". (REsp 1059214/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/02/2012, DJe 12/03/2012).
2.1. Rever a conclusão do Tribunal a quo acerca da presença dos requisitos legais para desconstituição do registro de nascimento em desacordo com a verdade biológica, diante da ocorrência de vício de consentimento consistente em erro e inexistência de filiação socioafetiva e genética, demandaria o reexame de provas, providência que encontra óbice na Súmula 7 desta Corte Superior.
3. Agravo interno desprovido.” (AgInt no REsp n. 1.755.970/MG, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 27/3/2023, DJe de 31/3/2023.
“DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. AUSÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. RELAÇÃO SOCIOAFETIVA. EXISTÊNCIA. JULGAMENTO: CPC/2015.
1. Ação negatória de paternidade cumulada com anulação de registro de nascimento ajuizada em 02/09/2017, da qual foi extraído o presente recurso especial interposto em 01/03/2019 e atribuído ao gabinete em 31/05/2019.
2. O propósito recursal é definir se é possível a declaração de nulidade do registro de nascimento do menor em razão de alegada ocorrência de erro e de ausência de vínculo biológico com o registrado.
3. O art. 1604 do CC/02 dispõe que "ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro". Vale dizer, não é possível negar a paternidade registral, salvo se consistentes as provas do erro ou da falsidade.
4. Esta Corte consolidou orientação no sentido de que para ser possível a anulação do registro de nascimento, é imprescindível a presença de dois requisitos, a saber: (i) prova robusta no sentido de que o pai foi de fato induzido a erro, ou ainda, que tenha sido coagido a tanto e (ii) inexistência de relação socioafetiva entre pai e filho. Assim, a divergência entre a paternidade biológica e a declarada no registro de nascimento não é apta, por si só, para anular o registro. Precedentes.
5. Na hipótese, apesar da inexistência de vínculo biológico entre a criança e o pai registral, o recorrente não se desincumbiu do ônus de comprovar a existência de erro ou de outra espécie de vício de consentimento a justificar a retificação do registro de nascimento do menor. Ademais, o quadro fático-probatório destacado pelo Tribunal local revela a existência de nítida relação socioafetiva entre o recorrente e a criança. Nesse cenário, permitir a desconstituição do reconhecimento de paternidade amparado em relação de afeto teria o condão de extirpar da criança preponderante fator de construção de sua identidade e de definição de sua personalidade.
6. Recurso especial conhecido e desprovido.” (REsp n. 1.814.330/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/9/2021, DJe de 28/9/2021.)
Aliás, nesse sentido é parecer ministerial, vejamos (ID 1877516678):
“Assim, torna-se necessário averiguar se o Apelante foi induzido a erro para registrar o infante e se não há relação socioafetiva entre os indivíduos.
Em relação à suposta existência de erro, verifica-se que o Apelante somente registrou o menor porque achava que era o pai biológico do Apelado, acreditando fielmente que o infante era seu filho, estando comprovado o engano não intencional.
Isso porque, como bem esclarecido pelo Prof. Márcio Lopes Cavalcante, “para que fique caracterizado o erro, é necessária a prova do engano não intencional na manifestação da vontade de registrar. Assim, no momento do registro, o pai registral deveria acreditar fielmente ser o verdadeiro pai biológico da criança. A existência de fundadas dúvidas sobre a paternidade da criança elimina a existência de erro escusável”1.
Em complemento, a Ministra Nancy Andrighi, no julgamento do REsp 1.272.691/SP, consignou que o Poder Judiciário não pode prejudicar uma criança por um capricho de um adulto que registrou, reconhecendo como filho, e posteriormente deseja livrar-se da paternidade:
“Em processos relacionados ao direito de filiação, é necessário que o julgador aprecie as controvérsias com prudência, para que o Poder Judiciário não venha a prejudicar a criança pelo mero capricho de um adulto que, livremente, o reconheceu como filho em ato público, e posteriormente, por motivo vil pretende ‘livrar-se do peso da paternidade’.” (Min. Nancy Andrighi)
Neste cenário, no momento do registro, o Apelante acreditava que era pai biológico do Apelado, inexistindo dúvidas quanto a isso, já que posteriormente o Apelante cuidou do menor como se genitor fosse, de maneira que este foi enganado de maneira não intencional.
No entanto, para que se admita a retificação do registro, é necessário cumprir o outro requisito exigido pela jurisprudência, correspondente a inexistência de vínculo socioafetivo.
Em relação à inexistência de filiação socioafetiva, a 4ª Turma do STJ esclarece que é necessário que esteja comprovado que o pai registral nunca foi um pai socioafetivo, inexistindo a construção de uma relação socioafetiva:
Assim, para que a ação negatória de paternidade seja julgada procedente, não basta apenas que o DNA prove que o “pai registral” não é o “pai biológico”. É necessário também que fique provado que o “pai registral” nunca foi um “pai socioafetivo”, ou seja, que nunca foi construída uma relação socioafetiva entre pai e filho
(STJ. 4ª Turma. REsp 1.059.214-RS, Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 16/2/2012). – grifo proposital
Analisando-se as provas dos autos, observa-se que o Apelante tratava o infante como filho, tendo a sua guarda consigo de 2007 a 2018, cumprindo o seu papel de pai na educação e desenvolvimento do menor, conforme relato extraído da exordial:
Em 08/09/2007, o requerente reconheceu a paternidade sobre o requerido, ao registrá-lo no Cartório competente, sem qualquer tipo de prova que comprovasse sua verdadeira paternidade. Apenas com base na presunção pater is est e na confiança em sua relação com sua convivente.
Dois meses após seu nascimento, o requerente e a mãe do requerido se separaram, ele permanecendo na cidade de Vilhena e ela tomado rumo ignorado, por este motivo o autor ficou com a guarda de seus dois filhos que teve com a mão do requerido.
O requerente cumpriu seu papel de pai e mãe do requerido, sempre educando, alimentando e proporcionando escola adequada para o mesmo.
Ocorre que com o passar do tempo, a pouco mais de 02 anos, a mãe do requerido entrou em contato com este, por meio de telefone, e teria lhe falado que o autor não é seu pai, que não presta.
A partir deste momento a vida do autor e de sua família passou por verdadeiro revés, pois a mãe do requerido o incentiva a furtar objeto de sua casa, a brigar com os seus irmãos mais novos e a desobedecer ao autor e sua companheira. Resta a ser mencionado que o requerido chegou a fugir da casa do autor e o mesmo teve que buscar ajuda de amigos e vizinhos para localizar o menor. Após insistência do requerido, que afirmava que sua havia lhe dito que não era filho do autor, o requerente fez o exame de DNA no mês de maio do corrente ano de 2018, onde ficou confirmado que de fato o requerido não é filho do requerente. – grifo proposital – id. 186527708
Assim, por 11 (onze) anos, a referência paterna do menor W. foi o Apelante, existindo vínculo socioafetivo, o que impede a anulação do registro.
Vale considerar, ainda, que os problemas de convívio entre o Apelante e o menor somente começaram a se acentuar após a genitora informar que o menor não era filho do Apelante, atrapalhando a continuidade do vínculo afetivo que fora construído.
Diante disso, vislumbro que existe vínculo socioafetivo entre pai e filho, uma vez que o Apelante tratou o menor como se seu filho biológico fosse durante 11 (onze) anos da vida do infante, embora o vínculo esteja prejudicado em consequência da ausência de vínculo biológico entre as partes.
A propósito, a pretensão de incluir o pai biológico no registro subsiste ainda na permanência do pai registral, inexistindo óbices para reconhecimento da paternidade biológica posteriormente, se o infante assim desejar.
No mesmo sentido, em julgado desta E. Corte:
RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE POST MORTEM – PRELIMINAR DE DIALETICIDADE REJEITADA - DECISÃO SOBRE LEGITIMIDADE PASSIVA – DESNECESSÁRIA – COEXISTENCIA ENTRE A PATERNIDADE BIOLOGICA E A SOCIOAFETIVA – STF – REPERCUSSÃO GERAL - DECISÃO REFORMADA - AGRAVO PROVIDO.
As razões esposadas no recurso de agravo guardam relação com os fundamentos da decisão interlocutória, não havendo violação do princípio da dialeticidade, impondo-se o conhecimento do recurso.
Tratando-se de investigação de paternidade, o STF com repercussão geral reconhecida, admitiu a coexistência entre as paternidades biológica e a socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos (RE 898.0600). Sendo assim, não há óbice ao exercício do reconhecimento da paternidade biológica mesmo com a existência de vínculo com o pai registral.
(N.U 1008045-66.2018.8.11.0000, CÂMARAS ISOLADAS CÍVEIS DE DIREITO PRIVADO, CARLOS ALBERTO ALVES DA ROCHA, Terceira Câmara de Direito Privado, Julgado em 03/04/2019, publicado no DJE 12/04/2019) – grifo proposital
Diante do exposto, esta Procuradoria de Justiça opina pelo desprovimento do presente recurso. [...].”
Diante disso, a sentença proferida pelo Juízo a quo não poderia ser mais acertada, da qual me valho para subsidiar meu voto, vejamos (ID 186527727):
“[...] Pois bem. Sendo assim, ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provado dolo, erro, coação, simulação ou fraude, pois como entende a remansosa jurisprudência do STJ, "O reconhecimento espontâneo da paternidade somente pode ser desfeito quando demonstrado vício de consentimento, isto é, para que haja possibilidade de anulação do registro de nascimento de menor cuja paternidade foi reconhecida, é necessária prova robusta no sentido de que o 'pai registral' foi de fato, por exemplo, induzido a erro, ou ainda, que tenha sido coagido a tanto (REsp. nº 1022763/RS, rela. Ministra Nancy Andrighi)".
Sim, pois “O reconhecimento voluntário de filhos tem natureza de ato jurídico stricto sensu, consoante a dicção do art. 185 da Lei Civil. Por isso, o ato de reconhecimento de filhos é irrevogável e irretratável. Não se olvide, contudo, a possibilidade de invalidação (reconhecimento de nulidade ou anulação) ano ato, por força de um dos motivos invalidantes dos negócios jurídicos em geral. Assim, apesar de se tratar de ato irrevogável e irretratável, é admissível a sua invalidação. Seria o exemplo de um reconhecimento de filho decorrente de erro ou de coação. (...) O ato de reconhecimento produz efeitos erga omnes, tratando-se de uma verdadeira confissão do vínculo parental”.
Em que pese tal assertiva, em momento algum o requerente afirmou que o registro de nascimento teria sido lavrado em virtude de vício de consentimento, mas sim que registrou o adolescente porque pensava ser o seu verdadeiro pai.
Consta da petição inicial que o requerido foi concebida durante o relacionamento amoroso então existente entre o requerente e a genitora do requerido, sendo que o requerente o registrou em seu nome, e passou a suprir suas necessidades básicas, além de que “nunca deixou de suprir o carinho atribuído a sua função de pai”, criando o menor sozinho por mais de 11 (onze) anos.
Vê-se, portanto, que a figura do pai foi e é presente na vida do menor, que a despeito de não tê-lo atualmente em seu diaadia, dentro de casa, foi por anos devoto de seu carinho, como bem frisado pelo requerente na narrativa exordial.
Portanto, é certo que entre os ora litigantes há relação de afeto suficiente capaz de caracterizar a paternidade socioafetiva, motivo pelo qual o pedido de desconstituição do vínculo de filiação não pode ceder diante de um laudo pericial negativo. Nesse sentido:
DIREITO DE FAMÍLIA – AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – EXAME DE DNA NEGATIVO – RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA – IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO – 1- Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar, quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva. 2- No caso, as instâncias ordinárias reconheceram a paternidade socioafetiva (ou a posse do estado de filiação), desde sempre existente entre o autor e as requeridas. Assim, se a declaração realizada pelo autor por ocasião do registro foi uma inverdade no que concerne à origem genética, certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com as então infantes vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade em si bastante à manutenção do registro de nascimento e ao afastamento da alegação de falsidade ou erro. 3- Recurso especial não provido. (STJ – REsp 1.059.214 – (2008/0111832-2) – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – DJe 12.03.2012 – p. 729)
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - PAI REGISTRAL - EXAME DE DNA NEGATIVO - PATERNIDADE SOCIOAFETIVA - CONFIGURAÇÃO - RECURSO DESPROVIDO - SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. - O reconhecimento voluntário da paternidade é um ato jurídico espontâneo, solene, público, pessoal, irrevogável e, portanto, inadmissível de arrependimento - A teor do que dispõe o artigo 171, II, do Código Civil, somente pode ser anulado mediante comprovação de que houve vício resultante de erro, dolo, coação, simulação ou fraude - A filiação decorrente da posse do estado de filho é modalidade de parentesco civil de "outra origem", qual seja, a origem afetiva, prevista de forma implícita no artigo 1.593 do Código Civil, que assim dispõe: "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou outra origem" - O c. Superior Tribunal de Justiça sedimentou o entendimento de que em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988 o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar - Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar, quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva - Havendo demonstração nos autos de que existe relação de afetividade entre o autor e a menor, não é possível desconstituir a paternidade.(TJ-MG - AC: 10000220396543001 MG, Relator: Ângela de Lourdes Rodrigues, Data de Julgamento: 28/04/2022, Câmaras Especializadas Cíveis / 8ª Câmara Cível Especializada, Data de Publicação: 29/04/2022)
Aqui, despreza-se por completo princípios elementares como o da dignidade da pessoa humana, a peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, entre outros, que visam justamente proteger as crianças e adolescentes das intempéries do mundo adulto, possibilitando-lhes ter um crescimento saudável e sadio, para que no futuro sejam cidadãos honrados, trabalhadores e conscientes de seus direitos e deveres. Ora, há nos autos um conflito de interesses jurídico versus interesse meramente econômico, em detrimento de todo o amor e carinho que um dia existiu entre ele e o adolescente.
Por fim, considerando que o requerente não alegou e/ou comprovou qualquer vício no consentimento no momento do registro de nascimento, não há como acolher o pedido inicial, sob pena de negar vigência ao art. 1.604 do CC.
Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE os pedidos veiculados na inicial, resolvendo o mérito da ação, nos termos do art. 487, inc. I, do CPC.
Custas serão suportadas pelo requerente, suspensa a exigibilidade dada a gratuidade da justiça.
Desta feita, constata-se que o magistrado singular formou sua convicção concluindo acertadamente pela presença da filiação socioafetiva.
Assim, não há como acolher a irresignação da parte apelante, pois comprovado nos autos a existência da paternidade socioafetiva já que o apelante assumiu sozinho todas as responsabilidades de pai por mais de 11 anos.
Ante o exposto, em consonância com o parecer ministerial, nego provimento ao recurso.
É como voto.-
Data da sessão: Cuiabá-MT, 22/11/2023