Data de publicação: 22/10/2024
Tribunal: STJ
Relator: MARIA ISABEL GALLOTTI
(...) “Não se pode aceitar que haja a devolução ao juízo da infância do adotando, nestas situações, impune, pois este ato violou o direito fundamental do adotante à convivência familiar, bem como foi desrespeitado o princípio da responsabilidade parental.” (...)
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. DESISTÊNCIA DE ADOÇÃO DE CRIANÇA NA FASE DO ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA. GENITORA BIOLÓGICA QUE CONTESTOU A ADOÇÃO E INSISTIU NO DIREITO DE VISITAÇÃO DO MENOR. DOENÇA NEUROLÓGICA CONSTATADA NA CRIANÇA. PAIS ADOTIVOS LAVRADORES SEM CONDIÇÕES FINANCEIRAS. DESISTÊNCIA JUSTIFICADA. ABUSO DE DIREITO NÃO CONFIGURADO.
(STJ - REsp: 1842749 MG 2015/0257054-9, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 24/10/2023, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/11/2023)
Inteiro Teor
RECURSO ESPECIAL Nº 1.842.749 - MG (2015/0257054-9)
RELATORA: MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI
RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
RECORRIDO: W N DA S
RECORRIDO: R R M S
ADVOGADO: CARLOS ANTÔNIO DA SILVA - MG049970
INTERES.: J V DE O (MENOR)
EMENTA
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. DESISTÊNCIA DE ADOÇÃO DE CRIANÇA NA FASE DO ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA. GENITORA BIOLÓGICA QUE CONTESTOU A ADOÇÃO E INSISTIU NO DIREITO DE VISITAÇÃO DO MENOR. DOENÇA NEUROLÓGICA CONSTATADA NA CRIANÇA. PAIS ADOTIVOS LAVRADORES SEM CONDIÇÕES FINANCEIRAS. DESISTÊNCIA JUSTIFICADA. ABUSO DE DIREITO NÃO CONFIGURADO.
1. A desistência da adoção durante o estágio de convivência não configura ato ilícito, não impondo o Estatuto da Criança e do Adolescente nenhuma sanção aos pretendentes habilitados em virtude disso.
2. Embora o fato de a criança ter recebido diagnóstico de doença grave e incurável possa ter contribuído para a desistência da adoção, haja vista que os candidatos a pais eram pessoas extremamente simples e sem condições financeiras, o fato de a genitora biológica ter contestado o processo de adoção e ter requerido, sucessivamente, que a criança lhe fosse devolvida ou que lhe fosse deferido o direito de visitação, não pode ser desprezado nesse processo decisório.
3. A desistência da adoção nesse contexto está devidamente justificada, não havendo que se falar, em situações assim, em abuso de direito, especialmente, quando, durante todo o estágio de convivência, a criança foi bem tratada, não havendo nada que desabone a conduta daqueles que se candidataram no processo.
4. Recurso especial a que se nega provimento.
ACÓRDÃO
A Quarta Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros João Otávio de Noronha e Raul Araújo (Presidente) votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Antônio Carlos Ferreira e Marco Buzzi.
Dr. ANTONIO SÉRGIO ROCHA DE PAULA, pela parte RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS.
Brasília (DF), 24 de outubro de 2023 (Data do Julgamento)
MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI
Relatora
RECURSO ESPECIAL Nº 1.842.749 - MG (2015/0257054-9)
RELATÓRIO
MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI: Trata-se de recurso especial interposto pelo Ministério Público de Minas Gerais, com fundamento no art. 105, III, a, da Constituição, contra acórdão do Tribunal de Justiça do mesmo Estado que, em ação de indenização por danos decorrentes de suposta desistência imotivada de adoção, proposta em favor do menor JVO contra RRRMS e WNDAS, negou provimento à sua apelação, mantendo, na íntegra a sentença que julgou improcedente o pedido, com base na seguinte ementa:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - INDENIZAÇÃO - DANO MATERIAL E MORAL - ADOÇÃO - DESISTÊNCIA PELOS PAIS ADOTIVOS - PRESTAÇÃO DE OBRIGAÇÃO ALIMENTAR - INEXISTÊNCIA - DANO MORAL NÃO CONFIGURADO - RECURSO NÃO PROVIDO.
- Inexiste vedação legal para que os futuros pais desistam da adoção quando estiverem com a guarda da criança.
- O ato de adoção somente se realiza e produz efeitos a partir da sentença judicial, conforme previsão dos arts. 47 e 199-A, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Antes da sentença, não há lei que imponha obrigação alimentar aos apelados, que não concluíram o processo de adoção da criança.
- A própria lei prevê a possibilidade de desistência, no decorrer do processo de adoção, ao criar a figura do estágio de convivência. - Inexistindo prejuízo à integridade psicológica do indivíduo, que interfira intensamente no seu comportamento psicológico causando aflição e desequilíbrio em seu bem-estar, indefere-se o pedido de indenização por danos morais.
Alega o recorrente, em síntese, que houve violação ao art. 535, II, do CPC, uma vez que o TJMG não teria apreciado os seus embargos de declaração da maneira devida. Assevera que o voto do Revisor que acabou prevalecendo não foi, na verdade, voto médio, porque o seu entendimento no sentido de que não restou configurado ato ilícito foi minoritário.
Ademais, sustenta que houve ofensa aos artigos 1º, 15, 33, § 3º, 35, 46, 47 e 199-A do Estatuto da Criança e do Adolescente, além dos artigos 186, 187 e 927, do Código Civil, uma vez que, no seu entender, a desistência da adoção, na fase de convivência, por motivo de doença constatada na criança, acarreta danos e, por consequência, dever de indenizar.
Não foram apresentadas contrarrazões (e-STJ fl. 465). É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.842.749 - MG (2015/0257054-9)
RELATORA: MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI
RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
RECORRIDO: W N DA S
RECORRIDO: R R M S
ADVOGADO: CARLOS ANTÔNIO DA SILVA - MG049970
INTERES.: J V DE O (MENOR)
EMENTA
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. DESISTÊNCIA DE ADOÇÃO DE CRIANÇA NA FASE DO ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA. GENITORA BIOLÓGICA QUE CONTESTOU A ADOÇÃO E INSISTIU NO DIREITO DE VISITAÇÃO DO MENOR. DOENÇA NEUROLÓGICA CONSTATADA NA CRIANÇA. PAIS ADOTIVOS LAVRADORES SEM CONDIÇÕES FINANCEIRAS. DESISTÊNCIA JUSTIFICADA. ABUSO DE DIREITO NÃO CONFIGURADO.
1. A desistência da adoção durante o estágio de convivência não configura ato ilícito, não impondo o Estatuto da Criança e do Adolescente nenhuma sanção aos pretendentes habilitados em virtude disso.
2. Embora o fato de a criança ter recebido diagnóstico de doença grave e incurável possa ter contribuído para a desistência da adoção, haja vista que os candidatos a pais eram pessoas extremamente simples e sem condições financeiras, o fato de a genitora biológica ter contestado o processo de adoção e ter requerido, sucessivamente, que a criança lhe fosse devolvida ou que lhe fosse deferido o direito de visitação, não pode ser desprezado nesse processo decisório.
3. A desistência da adoção nesse contexto está devidamente justificada, não havendo que se falar, em situações assim, em abuso de direito, especialmente, quando, durante todo o estágio de convivência, a criança foi bem tratada, não havendo nada que desabone a conduta daqueles que se candidataram no processo.
4. Recurso especial a que se nega provimento.
VOTO
MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI (Relatora): No presente caso, discute-se se a desistência da adoção na fase do estágio de convivência, após significativo lapso temporal, acarretaria a responsabilidade civil dos candidatos a pais adotivos e, por consequência, dever de indenizar o menor.
Em primeira instância, o Juiz de Direito da Vara da Infância e da Juventude julgou improcedente o pedido de indenização formulado pelo Ministério Público, por entender que os réus não teriam agido com abuso de direito e praticado ato ilícito, já que, como a Lei 8.069/90 prevê a possibilidade de desistência da adoção, eles teriam agido no exercício regular do seu direito.
Ao julgar a apelação interposta pelo MP contra a sentença, os desembargadores da 2a Câmara Cível do TJMG não chegaram a um consenso sobre o caso, tendo, cada um deles, proferido votos diferentes, impondo resultados diversos ao julgamento.
A Relatora, Desembargadora Hilda Maria Porto, deu parcial provimento à apelação do Ministério Público, apenas "para condenar os requeridos ao pagamento de obrigação alimentar ao menor, enquanto viver, em razão da doença irreversível que o acomete, no importe de um salário-mínimo", com base nos seguintes fundamentos:
Cabe ressalvar que o estágio de convivência é em prol da criança, e visa à verificação da adaptação ou não do adotando ao novo lar, não se prestando este estágio para que os pretensos pais adotivos decidam se vão adotar ou não, haja vista que tal decisão deve anteceder o efetivo ajuizamento do processo de adoção, para o fim de evitar danos à criança ou adolescente que já não puderam ficar com seus pais por alguma razão. Ressalta-se, inclusive, que os requeridos estavam firmes no propósito de adotar a criança ao ajuizar a ação de adoção com pedido de guarda, uma vez que pleitearam na inicial a dispensa do estágio de convivência (f. 68, f. 70).
Ora, de fato, não há vedação legal para que os futuros pais desistam da adoção quando estiverem com a guarda da criança. Contudo, cada caso deverá ser analisado com as suas particularidades. E, na hipótese em tela, observa-se que os requeridos estabeleceram um vínculo socioafetivo com a criança em razão de terem buscado a criança logo após o seu nascimento no hospital, e ficado com a mesma durante mais de dois anos até peticionarem o pedido de desistência da adoção, tempo este em que a criança esteve sob um vínculo familiar, com um lar, a figura de uma mãe e de um pai que, de repente, foi rompido e fez com que o menor se percebesse sozinho.
Neste ínterim, entendo que o ato ilícito que gera o direito à reparação decorre do fato de que os requeridos buscaram voluntariamente o processo de adoção do menor, manifestando, expressamente, a vontade de adotá-lo, obtendo sua guarda durante um lapso de tempo razoável, e, simplesmente, resolveram devolver imotivadamente a criança, de forma imprudente, rompendo de forma brusca o vínculo familiar que expuseram o menor, o que implica no abandono de um ser humano.
Registre-se que, embora os apelados aleguem que detinham apenas a guarda provisória e que agiram no exercício regular do direito, cumpre destacar que tal argumento não merece amparo, uma vez que não se pode promover a "coisificação" do processo de guarda.
Não há que se falar em "direito de devolução", uma vez que se trata de uma criança que possui direitos fundamentais a serem resguardados, consoante preceitua o art. 15, do Estatuto da Criança e do Adolescente: "a criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis".
Cabe enfatizar que, a adoção tem de ser vista com mais seriedade pelas pessoas que se dispõe a tal ato, devendo estas ter a consciência e atitude de verdadeiros "pais", que pressupõe a vontade de enfrentar as dificuldades e condições adversas que aparecerem em prol da criança adotada, assumindo-a de forma incondicional como filho, a fim deseja construído e fortalecido o vínculo filial.
Por outro lado, o Desembargador Afrânio Vilela negou provimento à apelação do MPMG, mantendo a sentença de improcedência, por entender que, antes da sentença judicial que constitui o vínculo da adoção, não há lei que imponha obrigação alimentar aos possíveis pais adotivos, que podem, inclusive, desistir do processo. Em seu voto, ele fez as seguintes ponderações:
A função do estágio de convivência é, justamente, apurar a adaptabilidade da criança ao casal e deste à criança. Logo, os apelados tinham o direito de desistir do processo de adoção daquela criança no decorrer do estágio de convivência e isso não configura qualquer ato ilícito ensejador de dano moral ou material. Entender de forma contrária, além de não possuir respaldo legal, causaria efeito pernicioso nos processos de adoção, afastando os casais que, receosos de sofrerem futuro processo judicial de reparação de danos, sequer se habilitariam a adotar uma criança, deixando de oportunizar aos infantes que sofreram com o abandono a chance de se verem integrados ao seio de uma família, de exercerem o direito de personalidade de filiação e de receberem e darem amor, o que contribui, sobejamente, para seu desenvolvimento como ser humano.
Finalmente, em seu voto, o Desembargador Marcelo Rodrigues deu parcial provimento à apelação do MP, apenas para condenar os réus a pagarem indenização por danos morais ao menor, da seguinte forma:
Não se pode aceitar que haja a devolução ao juízo da infância do adotando, nestas situações, impune, pois este ato violou o direito fundamental do adotante à convivência familiar, bem como foi desrespeitado o princípio da responsabilidade parental.
A responsabilidade parental, a fim de que alcance seus reais efeitos e de fato proteja as crianças e adolescentes, há que ser entendida em um sentido mais amplo. Assim, este princípio deve ser aplicado a todos os que figurem no papel dos pais biológicos, exercendo atributos do poder familiar. Os que exercerem a guarda (mesmo de fato), os tutores e adotantes têm de se submeter a este princípio.
De forma lúcida conclui Kátia Regina Maciel:
A devolução do adotando no curso do estágio de convivência, por si só, já uma violência para com este. Ficando demonstrado que os adotantes agiram com abuso de direito, está caracterizada a prática de ato ilícito, podendo e devendo haver a responsabilização civil destes. Contra eles deverá ser proposta ação de indenização pela prática de dano moral (...)(destacou-se).
Portanto, os adotantes arrependidos, dadas as particularidades que cercam o caso sob exame, devem responder por danos morais. Quanto aos pedidos de alimentos provisórios ou obrigação alimentar, diante do processo de (re) colocação do menor em família substituta, com deferimento de guarda provisória, conforme se vê à f.74-TJ, felizmente, diga-se, não subsistem motivos para seu deferimento.
Diante da divergência, entendeu-se, ao fim do julgamento, que deveria prevalecer o voto do Desembargador Afrânio Vilela que negava provimento à apelação do MP.
Opostos embargos de declaração pelo MP, sob o argumento de erro no julgado, quanto ao voto médio que deveria prevalecer, foram eles rejeitados pelo TJMG, sob o seguinte fundamento:
Na hipótese, cabe observar que no julgamento se formaram opiniões distintas, uma vez que, no voto da Des. Relatora, foi deferida a obrigação alimentar e indeferido o pagamento dos danos morais, indeferimento este acompanhado pelo Des. Revisor; no voto do Des. Vogal, foi deferida a indenização por danos morais e indeferida a obrigação alimentar, indeferimento este acompanhado pelo Des. Revisor; e, no voto, do Des. Revisor foram indeferidos ambos os pedidos. Logo, como o voto do Des. Revisor foi o que obteve maioria de votos, prevalecerá este como sendo a média dos votos ou o voto médio.
Irresignado, o MP interpôs o presente recurso especial contra o referido acórdão, alegando ter havido diversas violações a dispositivos de lei.
Inicialmente, afasto a alegação de ofensa ao art. 535 do antigo CPC, uma vez que a matéria relativa ao voto médio foi devidamente enfrentada pelo Tribunal de origem, que emitiu pronunciamento de forma fundamentada a respeito do assunto, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte recorrente.
No mais, diante das divergências nos votos proferidos no julgamento principal, percebe-se que não se trata de questão simples de ser resolvida.
Ao analisar o caso, é impossível não se solidarizar com a criança, mas também, por outro lado, ao contrário do que tenta demonstrar o Ministério Público, não me parece que os recorridos tenham praticado ato ilícito, nem agido de má-fé, com abuso de direito.
Para melhor compreensão do caso, narro aqui os principais fatos ocorridos durante o processo de adoção.
Na hipótese dos autos, os recorridos se candidataram à adoção e passaram a conviver com a criança em 12/03/2008, três dias após o seu nascimento, ocorrido em 09/03/2008.
Três anos depois, em maio de 2011, formalizaram pedido de desistência da adoção, alegando motivo de foro íntimo (fl. 74).
Entre eles assumirem a guarda provisória da criança e dela desistirem, dois fatos relevantes aconteceram e merecem consideração.
O primeiro foi que, logo no primeiro mês após estarem com a criança, a mãe biológica criou resistência à adoção, contestando-a, porque queria o filho de volta.
O segundo foi que, seis meses após estarem com a criança, souberam, por meio de exame realizado em setembro de 2008, que ela apresentava uma doença grave e incurável, decorrente de má formação do seu sistema nervoso central.
Nos três anos em que ficaram com a criança, é importante esclarecer que a adoção não chegou a ser formalizada por sentença judicial. Essa fase, conhecida por "estágio de convivência", está prevista no art. 46 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que assim dispunha, à época dos fatos:
Art. 46. A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo que a autoridade judiciária fixar, observadas as peculiaridades do caso.
Atualmente, registro que a Lei 13.509/2017 fixou o prazo máximo de 90 (noventa) dias para o estágio de convivência, mas, em 2008, quando se deram os fatos relativos ao presente caso, esse prazo não existia.
À época, o Estatuto da Criança e do Adolescente também não impunha nenhuma sanção aos pretendentes à adoção, por eventual desistência no curso do processo.
Assim, nesse cenário, não vejo como considerar que, ao desistirem da adoção, os recorridos tenham praticado ato ilícito, assim entendido aquele praticado em desacordo com a ordem jurídica. Por outro lado, também não me parece que tenham agido com abuso de direito.
Discorrendo sobre o abuso de direito, o Professor Nelson Rosenvald, Procurador de Justiça do MPMG, assim explica:
O verdadeiro critério do abuso de direito no campo das obrigações, por conseguinte, parece se localizar no princípio da boa-fé, pois, em todos os atos geralmente apontados como de abuso do direito estará presente uma violação ao dever de agir de acordo os padrões de lealdade e confiança, independentemente de qualquer propósito de prejudicar.
Conforme lição de TERSA NEGREIROS, boa-fé e abuso do direito complementam-se, operando aquela como parâmetro de valoração do comportamento dos contratantes: o exercício de um direito será irregular e, nesta medida, abusivo se consubstanciar quebra de confiança e frustração de legítimas expectativas.
(ROSENVALD, Nelson, Direito Civil Teoria Geral. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 475.)
No presente caso, após atenta análise do processo, parece-me que o motivo principal que desencadeou a desistência da adoção foi o fato de a mãe biológica da criança, depois de tê-la entregado à Justiça, haver, logo em seguida, em 27/03/2008, requerido que fosse revogada a guarda provisória dos recorridos e que seu filho fosse a ela devolvido, pois teria tomado a decisão de maneira equivocada, quando estava sob o efeito de forte depressão (fls. 18/19).
Registro que, na sentença, foram citados trechos de laudo elaborado pela assistente social, após visita aos recorridos, em 09/05/2008, em que consta que "após a apresentação da contestação feita pela genitora, iniciaram os medos e inseguranças de que a criança pudesse ser retirada da companhia deles, pois [já] o consideravam e reconheciam como filho" (fl. 31).
Na sequência, em setembro de 2008, os recorridos, após internação da criança devido a um quadro febre alta, tiveram a notícia de que ela era portadora de "malformação do sistema nervoso central", que a impediria de praticar os atos da vida diária com independência (locomover-se, alimentar-se e fazer sua higiene) (fl. 37).
Depois disso, em abril de 2010, nos autos do processo de adoção, a mãe biológica manifestou-se no sentido de que "gostaria que lhe fosse dada oportunidade para visitar o filho", e que, por ora, não daria "sua concordância ao pedido de adoção" (fl. 167).
Em maio do mesmo ano, a genitora voltou a reiterar seu pedido de visitação (fl. 169).
Posteriormente, em agosto de 2010, os recorridos apresentaram pedido de desistência da adoção por motivo de foro íntimo (fl. 171).
Diante desse cenário, em dezembro de 2010, novo laudo psicossocial, também citado na sentença, apontou o seguinte (fls. 49/50):
Pelo discurso do casal, percebeu-se que eles estão apegados principalmente à ideia de que a mãe biológica deseja ter o filho de volta. Ademais, segundo foi percebido, as consequências futuras quanto aos cuidados que João Vitor necessitará e quanto à expectativa de vida do infante têm causado insegurança e medo no casal. Eles declaram que não se sentem preparados para "dar conta" de cuidar da criança quando esta crescer, devido aos cuidados de que necessita/necessitará.
Pelo que pudemos observar, durante os atendimentos, W. e R. têm vivenciado várias angústias no decorrer do processo de adoção. Inicialmente, quando a mãe biológica contestou a ação, eles se viram frente à possibilidade de "perder" o filho, fato este que parece ter influenciado negativamente na construção do vínculo paterno/materno filial. Ao que parece, eles passaram a não se sentir como "pais", mas como aqueles que "estão cuidando" provisoriamente de JV. Posteriormente, eles receberam o diagnóstico de que JV era uma criança com necessidades especiais, outro fator que desencadeou sentimentos e insegurança e instabilidade emocional, especialmente, no Sr. W., o qual passou a fazer tratamento médico e uso de medicação antidepressiva.
Ciente do pedido de desistência da adoção, em setembro de 2011, o MPMG opinou pelo seu acolhimento e pela extinção do processo, sem resolução do mérito, já indicando para quem deveria ser deferida a nova guarda provisória da criança (fls. 172/175).
Depois disso, porém, o MP ingressou com ação civil pública contra os recorridos, alegando que teriam agido com negligência, ao desistirem da adoção pelo fato de a criança apresentar doença de caráter irreversível.
Em que pesem as alegações do Ministério Público, não me parece que a desistência da adoção, neste caso, tenha se dado apenas em virtude da doença da criança, embora reconheça que, para um casal de lavradores que concluíram apenas o ensino fundamental e cuja renda mensal, na época, era de R$ 1.800,00 (fls. 20/21 e fl.
414 - Voto vogal), a circunstância de terem que cuidar de bebê com graves problemas de saúde e que demandava diversos acompanhamentos médicos na cidade é, de fato, fator que traz insegurança e instabilidade e que pode ter contribuído para a sua decisão. Analisar esse drama familiar sob um enfoque tão simplista, como se os
candidatos a pais adotivos fossem pessoas más, sem considerar todas as nuances do caso, só traz, a meu ver, mais dor às partes envolvidas e não ajuda em nada o menor.
Faltou aqui ao MP a sensibilidade de perceber que, para pais candidatos à adoção, a possibilidade real de perderem a criança para a mãe biológica foi um elemento decisivo para o rompimento do seu vínculo afetivo com o menor. Note-se que, no caso, em diversos momentos, a mãe manifestou-se nos autos da adoção, requerendo que a criança fosse a ela devolvida ou que lhe fosse deferido direito de visitação.
Embora, durante a última audiência realizada, a genitora tenha aberto mão do filho, o fato é que, depois de tudo que já tinha acontecido, era mesmo difícil reverter a decisão dos recorridos.
A meu ver, não é razoável exigir que pretendentes à adoção fiquem tranquilos com a perspectiva de perder a criança a qualquer momento ou que aceitem que os pais biológicos continuem a visitá-la.
Essa convivência, embora possa ser desejável, do ponto de vista prático, não funciona, pois desencadeia nos pais adotivos não só o medo da perda da criança, mas também o medo da perda da própria autoridade no futuro, em eventuais situações adversas.
Enfim, cumpre destacar que, neste caso, os recorridos, enquanto estiveram com a criança, agiram da melhor maneira, prestando toda a assistência necessária, até que nova família fosse encontrada para lhe dar guarida.
Não há relatos de maus tratos, nem de desídia, ou abandono da criança. Trata-se de pessoas extremamente simples, agricultores que
completaram o ensino fundamental, que tinham o sonho de ser pais e que não concretizaram a adoção, por circunstâncias que considero alheias à sua vontade (medo de perderem a criança para a mãe biológica e medo de não conseguirem cuidar de uma criança que demanda cuidados extraordinários).
Diante desse contexto, não entendo que, neste caso, os recorridos tenham agido com abuso de direito, nem que estejam configuradas as violações ao Estatuto da Criança e do Adolescente mencionadas pelo MPMG.
Em face do exposto, nego provimento ao recurso especial.
É como voto.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
QUARTA TURMA
Número Registro: 2015/0257054-9 PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.842.749 /
MG
Números Origem: 00028967420128130481 10481120002896002 10481120002896003 10481120002896005
28967420128130481 481120002896
PAUTA: 24/10/2023 JULGADO: 24/10/2023
SEGREDO DE JUSTIÇA Relatora
Exma. Sra. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro RAUL ARAÚJO
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. PAULO EDUARDO BUENO
Secretária
Dra. TERESA HELENA DA ROCHA BASEVI
AUTUAÇÃO
RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
RECORRIDO: W N DA S
RECORRIDO: R R M S
ADVOGADO: CARLOS ANTÔNIO DA SILVA - MG049970
INTERES.: J V DE O (MENOR)
ASSUNTO: DIREITO CIVIL - Família - Relações de Parentesco
SUSTENTAÇÃO ORAL
Dr. ANTONIO SÉRGIO ROCHA DE PAULA, pela parte RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Quarta Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.
Os Srs. Ministros João Otávio de Noronha e Raul Araújo (Presidente) votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Antônio Carlos Ferreira e Marco Buzzi.