#1 - Danos Morais. Abuso Sexual Infantil. Indenização.

Data de publicação: 30/09/2024

Tribunal: STJ

Relator: ANTONIO CARLOS FERREIRA

Chamada

(...) “Em virtude da complexidade do trauma associado ao abuso sexual infantil, é possível que, aos 21 (vinte e um) anos de idade, a vítima ainda não tenha plena consciência de toda a extensão do dano sofrido e das consequências desse fato ao longo de sua vida.” (...)

Ementa na Íntegra

CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ABUSO SEXUAL INFANTIL. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. TEORIA SUBJETIVA DA ACTIO NATA. APLICAÇÃO. RECURSO PROVIDO.

(STJ - REsp: 2123047 SP 2023/0139578-0, Relator: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 23/04/2024, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/04/2024)

Jurisprudência na Íntegra

Inteiro Teor 

 

RECURSO ESPECIAL Nº 2123047 - SP (2023/0139578-0) 

  

RELATOR: MINISTRO Nome 

  

RECORRENTE : Nome 

  

ADVOGADOS : Nome - SP184877 Nome - SP386236 

  

RECORRIDO : Nome 

  

ADVOGADOS : Nome - SP087289 

  

Nome - SP249384 

  

EMENTA 

  

CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ABUSO SEXUAL INFANTIL. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. TEORIA SUBJETIVA DA ACTIO NATA. APLICAÇÃO. RECURSO PROVIDO. 

  

1. Em situações peculiares, nas quais a vítima não detém plena consciência do dano nem de sua extensão, a jurisprudência desta Corte tem adotado a teoria subjetiva da actio nata , elegendo a data da ciência como termo inicial da prescrição. 

  

2. No caso de violência sexual ocorrida na infância e na adolescência, não é razoável exigir da vítima a imediata atuação no exíguo prazo prescricional de 3 (três) anos após atingir a maioridade civil (art. 206, § 3º, V, do CC/2002). Em virtude da complexidade do trauma associado ao abuso sexual infantil, é possível que, aos 21 (vinte e um) anos de idade, a vítima ainda não tenha plena consciência de toda a extensão do dano sofrido e das consequências desse fato ao longo de sua vida. 2.1. Dessa forma, é imprescindível conceder à vítima a oportunidade de comprovar o momento em que constatou os transtornos decorrentes do abuso sexual, a fim de estabelecer o termo inicial de contagem do prazo prescricional para a reparação civil. 

  

3. Recurso especial provido para determinar o retorno dos autos ao Juízo de primeira instância, facultando às partes a produção de provas, devendo posteriormente ser analisada a prescrição sob a ótica da teoria subjetiva da actio nata. 

  

ACÓRDÃO 

  

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUARTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, em sessão de julgamento do dia 23/04/2024, por votação unânime, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. 

  

Os Srs. Ministros Nome, Nome e Nome votaram com o Sr. Ministro Relator. 

  

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nome. 

  

Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Nome. 

  

Brasília, 23 de abril de 2024. 

  

Ministro Nome 

  

Relator 

  

RECURSO ESPECIAL Nº 2123047 - SP (2023/0139578-0) 

  

RELATOR : MINISTRO Nome 

  

RECORRENTE : Nome 

  

ADVOGADOS : Nome - SP184877 Nome - SP386236 

  

RECORRIDO : Nome 

  

ADVOGADOS : Nome - SP087289 

  

Nome - SP249384 

  

EMENTA 

  

CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ABUSO SEXUAL INFANTIL. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. TEORIA SUBJETIVA DA ACTIO NATA. APLICAÇÃO. RECURSO PROVIDO. 

  

1. Em situações peculiares, nas quais a vítima não detém plena consciência do dano nem de sua extensão, a jurisprudência desta Corte tem adotado a teoria subjetiva da actio nata , elegendo a data da ciência como termo inicial da prescrição. 

  

2. No caso de violência sexual ocorrida na infância e na adolescência, não é razoável exigir da vítima a imediata atuação no exíguo prazo prescricional de 3 (três) anos após atingir a maioridade civil (art. 206, § 3º, V, do CC/2002). Em virtude da complexidade do trauma associado ao abuso sexual infantil, é possível que, aos 21 (vinte e um) anos de idade, a vítima ainda não tenha plena consciência de toda a extensão do dano sofrido e das consequências desse fato ao longo de sua vida. 2.1. Dessa forma, é imprescindível conceder à vítima a oportunidade de comprovar o momento em que constatou os transtornos decorrentes do abuso sexual, a fim de estabelecer o termo inicial de contagem do prazo prescricional para a reparação civil. 

  

3. Recurso especial provido para determinar o retorno dos autos ao Juízo de primeira instância, facultando às partes a produção de provas, devendo posteriormente ser analisada a prescrição sob a ótica da teoria subjetiva da actio nata. 

  

RELATÓRIO 

  

Trata-se de recurso especial fundamentado no art. 105, III, a e c, da CF, interposto contra acórdão assim ementado (e-STJ, fl. 173): 

  

AÇÃO INDENIZATÓRIA. Sentença de extinção ante o reconhecimento da prescrição. Insurgência da autora. 

  

Preliminar de cerceamento de defesa afastada. Autora vítima de abuso sexual quando menor. Fatos ocorridos entre 1996 e 1999, na vigência do CC/1916. Início da fluência do prazo prescricional com a maioridade. Decurso do prazo trienal nos termos do art. 206, § 3º, inciso V, do CC/2002, contados da vigência do CC/2002. Precedentes desta Câmara e do C. STJ. Sentença mantida. RECURSO NÃO PROVIDO. 

  

Em suas razões (e-STJ, fls. 211/229), a parte recorrente aponta, além de dissídio jurisprudencial, violação dos seguintes dispositivos legais: 

  

(i) arts. 206 6, § 3ºº, V, e 189 9 do CC/2002 2, "uma vez que o prazo prescricional não começa contar a partir do evento danoso, mas a partir do momento em que se constatou os efeitos do dano, ou seja, quando o dano efetivamente ocorreu. Isso porque, conforme esclarecido na inicial, os incontáveis abusos sexuais cometidos pelo recorrido durante quatro anos da sua infância e juventude causaram à recorrente consequências psicológicas graves que afetaram sua saúde mental, causando danos psicológicos constatados em data recente. De acordo com o artigo 206, § 3º, inciso III, do Código de Processo Civil, prescreve em três anos a pretensão de reparação civil, de forma que o prazo prescricional não começa contar a partir do evento danoso em si, mas a partir de quando se constatou que o dano efetivamente ocorreu. [...]. Além disso, verifica-se que o artigo 189 do Código Civil consagra o princípio da Actio Nata, segundo o qual a prescrição só começa a correr após a efetiva lesão do direito" (e-STJ, fl. 217). Informa que "o início da fluência do referido prazo prescricional ocorreu quando a recorrente começou a ter problemas psicológicos em decorrência dos abusos sexuais praticados pelo recorrido quando ela ainda era adolescente. [...]. Ainda que a recorrente tenha convivido com angústia e distúrbios decorrentes dos graves abusos relatados, os danos de fato só foram constatados a partir das crises de pânico, ansiedade e depressão, que tiveram início em 2020, quando passou a sentir fortes dores no peito que a levaram ao Hospital, sendo então diagnosticada com crise de pânico, momento em que iniciou tratamento psicológico, o qual o fez constatar o dano que a impedia de prosseguir com suas atividades rotineiras" (e-STJ, fls. 218/219); 

  

(ii) art. 355 5, I, do CPC/2015 5, "isso porque, o julgamento antecipado da lide se dá nos casos de manifesta desnecessária de instrução probatória. Não era, no entanto, o caso destes autos. Para que fosse avaliado o termo inicial da prescrição, era 

  

imprescindível a produção de prova oral, consistente na oitiva da psicóloga da recorrente, que roboraria a data em que a conduta do recorrido causou graves problemas psicológicos à recorrente, a partir da qual se deveria considerar o termo inicial da prescrição. Assim, apesar do fato danoso praticado pelo recorrido ter ocorrido entre os anos de 1996 a 1999, era necessária dilação probatória para corroborar que a ocorrência do dano se deu a partir de 2020, quando a recorrente começou a apresentar problemas psicológicos em decorrências dos abusos" (e-STJ, fls. 220/221); e 

  

(iii) art. 927 7, caput, do CC/2002 2, sob alegação de que "o ato ilícito foi a 

  

prática dos abusos sexuais cometidos pelo recorrido contra a recorrente, que causaram a violação da sua dignidade sexual, moral e honra, havendo, portanto, nexo causal entre a conduta e o dano. Com isso, resta caracterizada a responsabilidade civil do recorrido, ante a prática de um ato ilícito que causou danos imensuráveis à recorrente, gerando o dever de indeniza-la" (e-STJ, fl. 225). 

  

Contrarrazões apresentadas às fls. 245/249 (e-STJ). 

  

Parecer do Ministério Público Federal pelo provimento do recurso (e-STJ, fls. 299/310). 

  

É o relatório. 

  

VOTO 

  

Na origem, foi ajuizada ação de indenização por danos materiais e morais em decorrência de abuso sexual sofrido na infância, cujos fatos encontram-se descritos na petição inicial (e-STJ, fls. 4/17 - grifei): 

  

A requerente foi vítima de abusos sexuais cometidos pelo requerido, seu padrasto na época dos fatos, durante quatro anos de sua juventude. 

  

Para melhor elucidar os acontecimentos, necessárias sucintas menções preliminares a respeito da relação estabelecida entre as partes e o contexto em que ocorreram os abusos. 

  

Nesse quadro, informa-se que o requerido iniciou um relacionamento com a genitora da requerente, quanto ela tinha apenas 5 anos de idade. 

  

Assim, desde então, a requerente passou a vê-lo como sua figura paterna, uma vez que ele era um padrasto carinhoso, que se preocupava com a família, além de sempre a presentear, não havendo motivos para qualquer desconfiança ou suspeita a respeito do seu caráter. 

  

No entanto, o requerido, aproveitando-se da confiança atribuída à ele pela genitora da requerente, bem como de ser visto pela requerente como um pai, passou a abusar sexualmente da requerente quando ela tinha apenas 11 anos de idade. 

  

[...] 

  

Os abusos ocorreram regularmente dos 11 aos 14 anos da requerente. Como se sabe, durante esta idade, uma criança, saindo da infância e entrando na adolescência, ainda não possui conhecimento sexual suficiente para compreender que está sendo vítima de abusos, principalmente quando são praticados por um ente próximo, como no presente caso. 

  

A requerente se sentia confusa e amedrontada pelos abusos sexuais que sofria de seu padrasto, pois ele era visto por ela como um pai, assim, ela se via impedida de resistir aos atos, uma vez que temia desagradar o requerido. [...] 

  

Os abusos sexuais somente foram descobertos pela genitora da requerente quando ela leu uma carta enviada pelo requerido em que ele mencionava intimidades da requerente. 

  

Ciente de todo o ocorrido, a genitora da requerente terminou seu relacionamento com o requerido e mudou-se com ela para a cidade de São Vicente - SP. 

  

[...] 

  

No decorrer dos anos, ao não encontrar solução para lidar com seus traumas, a requerente internalizou o ocorrido e passou a viver em silêncio com as infelizes lembranças, esperando que um dia pudesse deixa-las para trás. 

  

Entretanto, em meados de 2019, a requerente começou a reviver nas lembranças a violência sexual sofrida quando jovem. As memórias dos incontáveis abusos sexuais passaram a lhe causar crises de pânico e dores no peito a ponto de necessitar ir ao hospital. 

  

Para amenizar seu sofrimento, no ano de 2020, a requerente iniciou sessões de terapia, as quais ocorrem até a presente data, e ali descobriu que a causa de suas crises eram os abusos sexuais sofridos na juventude, conforme parecer técnico em anexo, realizado por sua psicóloga. 

  

[...] 

  

Além disso, mesmo decorrido tantos anos desde a época dos fatos, a requerente atualmente necessita de acompanhamento psicológico para tratar os ataques de ansiedade e sintomas de depressão causados pelos abusos sofridos, conforme parecer técnico de sua psicóloga: 

  

[...] 

  

Ante o exposto, requer à Vossa Excelência: 

  

[...] 

  

c) A procedência total do pedido, condenando o requerido ao pagamento de indenização por danos morais, a ser fixada no valor de R$ 50.000,00 e em danos materiais, no valor de R$ 5.400,00 referentes aos gastos da requerente com terapia psicológica necessários a preservação de sua saúde mental ; 

  

O Juízo da 2a Vara Cível do TJSP declarou a prescrição da pretensão indenizatória e julgou extinto o processo com resolução do mérito, nos termos do art. 487, II, do CPC/2015, por entender que "o prazo de 03 anos passou a correr a partir de 10/01/2003, findando-se em 10/01/2006. A presente ação somente foi ajuizada em 30/08/2021, portanto, mais de quinze anos após esvaído o prazo prescricional, sendo imperiosa a sua extinção" (e-STJ, fl. 109). 

  

Ao julgar o recurso de apelação da autora, o Tribunal de origem manteve a sentença, pelos seguintes fundamentos (e-STJ, fl. 175): 

  

A autora, atualmente com 37 anos (nascida aos 01/09/1984 págs 49), ajuizou a ação em 30/08/2021, quando já havia transcorrido muito mais que os três anos de prazo prescricional, previstos no art. 206, § 3º, inciso V, do CC, contados a partir da vigência do CC/2002, cuja contagem não precisa de maiores explicações das que já constaram na sentença, eis que considerou que os fatos ocorreram durante a vigência do CC/1916. 

  

O prazo, ao contrário do sustentado pela apelante, tem a fluência a partir da maioridade, e não, do início do tratamento psicológico, eis que já tinha discernimento suficiente para mensurar a gravidade dos fatos ocorridos e o livre arbítrio para procurar os meios legais para responsabilização do réu. 

  

Portanto, a controvérsia dos autos diz respeito ao termo inicial da prescrição no caso de abuso sexual cometido contra menor de idade, em que o resultado lesivo do crime foi efetivamente constatado pela vítima apenas muitos anos após a cessação dos atos libidinosos. 

  

O abuso sexual praticado contra menores de idade é fato grave e alarmante, que traz consequências devastadoras para as vítimas e suas famílias. Embora seja tema sensível, é fundamental discuti-lo para ampliar a conscientização e promover medidas eficazes de prevenção e combate. 

  

Infelizmente, as estatísticas relacionadas ao abuso sexual de crianças e adolescentes no Brasil são preocupantes. De acordo com o Boletim Epidemiológico Volume 54 - n. 8, divulgado pelo Ministério da Saúde no dia 18/5/2023, foram notificados, de 2015 a 2021, 202.948 (duzentos e dois mil, novecentos e quarenta e oito) casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, quase 80 (oitenta) casos por dia. Mais alarmantes ainda são os dados envolvendo bebês com até um ano de idade: 3.386 (três mil, trezentos e oitenta seis) em apenas sete anos, ou seja, mais de um caso por dia. Esses números representam uma fração do problema, pois muitos infortúnios não são denunciados por medo, vergonha, ou por falta de consciência da vítima sobre o abuso sofrido. 

  

O levantamento também mostra que, entre as crianças, as meninas constituem os principais alvos de agressores, que são majoritariamente do gênero masculino. Foram 64.230 (76,9%) casos contra meninas de 0 a 9 anos e 19.341 (23,1%) contra meninos da mesma faixa etária. Em relação aos adolescentes (10 a 19 anos), do total de 119.377 casos de violência sexual, 110.657 (92,7%) foram contra meninas. 

  

Além disso, a pesquisa aponta que a maioria dos casos de abuso sexual contra menores ocorre no ambiente doméstico ou é praticada por pessoas próximas à vítima. Esse contexto dificulta a identificação e a denúncia dos agressores, tornando o combate ao abuso sexual infantil um desafio ainda maior. 

  

Outro aspecto preocupante é a impunidade. Muitos casos de abuso sexual contra menores não chegam ao Sistema de Justiça ou enfrentam dificuldades para serem investigados e punidos adequadamente. Isso cria um ciclo de violência e perpetuação do trauma para as vítimas, que muitas vezes sofrem em silêncio e têm suas vidas marcadas pelo aviltamento. 

  

Para lidar com esse problema complexo, além de investimento em políticas públicas eficazes de prevenção, proteção e assistência às vítimas de abuso sexual infantil, é necessário o aprimoramento do Sistema de Justiça para garantir que os agressores sejam responsabilizados por seus atos. 

  

No mais, é importante que toda a sociedade se mobilize para combater o abuso sexual contra menores de idade, promovendo um ambiente seguro e acolhedor para as crianças e adolescentes, onde seus direitos sejam respeitados e protegidos. A denúncia é um passo crucial nesse processo, e é fundamental que as vítimas se sintam encorajadas a buscar ajuda e que os agressores sejam responsabilizados legalmente por seus crimes. 

  

Feitas essas considerações, passo à análise do termo inicial do prazo prescricional na ação de reparação civil em decorrência de abuso sexual sofrido na infância ou adolescência. 

  

O abuso sexual ocasiona danos permanentes, deixando cicatrizes emocionais, cognitivas e comportamentais que podem perdurar ao longo da vida da vítima, conforme evidenciado em trecho de estudo publicado na Revista de Psicologia, que transcrevo a seguir: 

  

À saúde mental do indivíduo, que podem, inclusive, perdurar por anos ou pela vida toda. Isso foi estudado porque analisaram os efeitos negativos à saúde mental de indivíduos entre dezoito e trinta anos, que haviam sido vítimas de abuso sexual de menor. Os autores verificaram a presença marcante de muitas adversidades psicológicas nesse grupo estudado, tais como depressão, ansiedade, tendência suicida, abuso e dependência de substâncias, bem como problemas no bem-estar psicológico e nos comportamentos sexuais. (Siebra, Danielle Xenofonte; Barroso, Marianna Leite; Nome; Nome; e Oliveira, Nome de. Os prejuízos causados à saúde mensal e à vida sexual adulta das mulheres vítimas de abuso sexual na infância. Revista Multidisciplinar e de Psicologia. Vol. 13, n. 46, 2019. https://idonline.emnuvens.com.br/id/article/view/1890/2861) 

  

Por sua vez, esses danos podem se manifestar de maneira mais perceptível em determinadas épocas da vida da pessoa, muitas vezes em resposta a acontecimentos específicos. Por exemplo, uma pessoa que tenha sido vítima de abuso sexual na infância pode experimentar o ressurgimento significativo dos traumas durante a gravidez, o nascimento de um filho, ou ao entrar em relacionamento íntimo. Esses eventos podem desencadear lembranças dolorosas e uma série de reações emocionais e psicológicas, como ansiedade, depressão ou baixa autoestima. 

  

Em pesquisa publicada na Revista Ciência & Saúde Coletiva, constatou-se que o trauma decorrente do abuso sexual na infância pode ressurgir em diferentes fases da vida, desencadeado por gatilhos associados a situações cotidianas, como evidenciado no seguinte trecho do artigo: 

  

O processo depressivo, assim como outras formas de adoecimento mental, pode estar relacionado ao trauma causado pelo abuso sexual, principalmente devido ao impacto dessa vivência na vida das crianças. Esse trauma pode apresentar-se sob a forma de TEPT, conforme sinalizado pelos estudos de Ulibarr et al. e Houston et al., que revelaram associação positiva desse distúrbio de ansiedade para o abuso sexual sofrido na infância. Importante referir que o TEPT se caracteriza como um transtorno que reúne sinais e sintomas físicos e psicológicos provenientes de situações traumáticas vivenciadas ou presenciadas pela vítima, a qual passa a reviver recorrentemente o episódio assim como ocorreu no passado. Vale salientar que a rememoração possui gatilhos vinculados a diversas situações do cotidiano, sendo o processo do parto um período mais propício . Corroborando, estudo realizado por Montgomery et al. mostra que puérperas com história de violência sexual na infância apresentaram sinais de TEPT em situações como: exames vaginais e procedimentos íntimos; dor durante o trabalho de parto; aparecimento inesperado de pessoas desconhecidas; ações de terceiros que as fizessem rememorar o vivido. (Cruz, Nome; Nome; Nome; Nome; Nome; e Nome. Ciência & Saúde Coletiva, 2021, fl. 1.375 https://www.scielosp.org/pdf/csc/2021.v26n4/1369-1380/pt) 

  

Da mesma forma, a vítima de abuso sexual pode enfrentar desafios adicionais ao longo da vida, como lidar com o estresse no trabalho, nas mudanças de relacionamento, ou mesmo ao atingir marcos importantes de desenvolvimento pessoal. Nessas circunstâncias, os efeitos do abuso sexual podem se tornar mais evidentes e exigir intervenção terapêutica ou apoio especializado. 

  

Logo, embora os danos do abuso sexual sejam intrinsecamente permanentes, sua manifestação pode variar ao longo do tempo e em resposta a diferentes eventos ou estágios da vida da vítima. Muitas vezes, as vítimas enfrentam dificuldades para lidar com as consequências emocionais e psicológicas do abuso e podem levar anos, ou mesmo décadas, para reconhecer e processar plenamente o trauma que sofreram. 

  

Nessa perspectiva, "não é possível generalizar os impactos do abuso sexual para todos os adultos, pois a profundidade e a proporção dos danos dependem da singularidade e da experiência de cada criança [...]. Com o passar do tempo da vida da vítima, algumas alterações procedentes do abuso sexual tendem a diminuir, enquanto outras aparecem ou se exacerbam" (Oliveira, Nome, Nome; Ferro, Nome; e Nome. Abuso sexual infantil e consequências na vida adulta: uma revisão sistemática. Research, Society and 

  

  

). 

  

Por conseguinte, parece-me desarrazoado exigir da vítima de abuso sexual a imediata atuação no exíguo prazo prescricional de três anos após atingir a maioridade civil. Em razão da complexidade do trauma causado pelo abuso sexual infantil, é plenamente possível que, aos 21 (vinte e um) anos de idade, ela ainda não tenha total consciência do dano sofrido nem das consequências desse fato ao longo de sua vida. 

  

Sob outro ângulo, é crucial considerar a possibilidade de a vítima, aos 21 (vinte e um) anos, ainda manter contato direto com o agressor, que, na maior parte das vezes, é membro da família, como o pai, o padrasto ou parente próximo. Essa situação pode adicionar uma camada significativa de complexidade e dificuldade para reconhecer e lidar com o abuso sofrido. 

  

Estudos na área de psicologia demonstram que "a criança pode se silenciar diante do sentimento de culpa, por ter permitido o ato, vergonha de si mesma e medo do agressor, deste modo, o abuso pode ficar em segredo durante anos, impossibilitando a busca de ajuda (Nome Nome, 2010). Quando se trata do abuso sexual intrafamiliar, pode ocorrer o pacto do silêncio entre o abusador, a criança e a família, o agressor usa a sedução e a ameaça para manipular a vítima, que por culpa ou por identificação com o agressor opta por silenciar-se, enquanto o resto da família tende a negar ou minimizar os fatos (BATISTA, 2009). Em alguns casos, mesmo depois do abuso ser revelado pela criança, ela ainda tem que conviver com o agressor, adulta, fl. 163. https://multivix.edu.br/wp-content/uploads/2022/04/revista-universo- academico-v31-n01-artigo07.pdf). 

  

Quando o abusador é uma figura de autoridade ou um membro próximo da família, a vítima eventualmente enfrentará uma série de barreiras emocionais, sociais e psicológicas para reconhecer e denunciar a violência sexual. Isso pode ser especialmente verdadeiro se o agressor ainda estiver presente em sua vida e exercendo influência sobre ela, criando um ambiente de medo, manipulação e coerção. 

  

A respeito do abuso sexual intrafamiliar, Nome, Promotora de Justiça do Estado do Espirito Santo, destaca que" os fatores que o permeiam são quase sempre os mesmos: a dependência estrutural entre criança e seus pais, questões de poder que envolvem esta relação, o sentimento de cumplicidade da criança em relação ao abuso, além do segredo envolvido no processo "(RANGEL, Patrícia Calmon. Abuso sexual intrafamiliar recorrente. Curitiba: Juruá, 2001). 

  

Naturalmente, o contato contínuo com o agressor pode impedir que a vítima reconheça o abuso como uma violação de seus direitos e busque ajuda externa. Ela pode se sentir pressionada a proteger o agressor, manter segredos familiares ou temer represálias caso denuncie o abuso. 

  

Nesse intrincado contexto de aviltamento sexual intrafamiliar, Nome, especialista em violência doméstica e doutora em serviço social, informa que" não raras vezes, somente na vida adulta são mencionadas situações de violência sexual sofridas na infância , 'havendo relatos de ocorrerem em muitos pacientes psiquiátricos ambulatoriais e em até 50% das mulheres internadas em unidades psiquiátricas'. Da experiência profissional, junto ao sistema de Justiça da Infância e Juventude, colhem-se lembranças de mães, diante da revelação do abuso sexual praticado contra a filha, onde o abusador era o avô da criança, relatarem experiências semelhantes vivenciadas na sua infância, mantidas em segredo durante longos anos. Embora não existam estudos prospectivos sobre as conseqüências do abuso sexual sofrido na infância, na idade adulta, 'os testemunhos, cada vez mais freqüentes de adultos que sofreram abuso na infância e, sobretudo, de vítimas de incesto, permitem-nos dizer que as reações podem ser tardias e se manifestam em distúrbios da sexualidade e da parentalidade '"(Nome Fay de. Violência sexual intrafamiliar. Editora Livraria do advogado, Porto Alegre, 2004, fl. 126). 

  

Dessa forma, considerar que o prazo prescricional de reparação civil termina 

  

obrigatoriamente apenas três anos após a maioridade não é suficiente para proteger integralmente os direitos da vítima. Logo, torna-se essencial analisar cuidadosamente o contexto específico para determinar o início do lapso prescricional em situações de abuso sexual na infância e adolescência. 

  

Em regra, esta Corte Superior adota para o cômputo da prescrição a teoria objetiva da actio nata , considerando a data da efetiva violação ao direito como marco inicial para a contagem (art. 189 do CC/2002). Contudo, em situações peculiares, em que a vítima não possui o total conhecimento do dano e de sua extensão, a jurisprudência deste Tribunal tem adotado a teoria subjetiva da actio nata , elegendo a data da ciência como termo inicial da prescrição. A propósito: REsp n. 2.037.094/PR, relator Ministro Nome, Quarta Turma, julgado em 25/4/2023, DJe de 30/5/2023; AgInt nos EDcl no REsp n. 1.816.678/MA, relator Ministro Nome, Terceira Turma, julgado em 18/12/2023, DJe de 20/12/2023; AgInt no AREsp n. 802.391/RJ, relatora Ministra Nome, Quarta Turma, julgado em 11/9/2023, DJe de 14/9/2023; REsp n. 1.939.455/DF, relatora Ministra Nome, Segunda Seção, julgado em 26/4/2023, DJe de 9/6/2023; AgInt nos EDcl no REsp n. 1.776.810/MA, relator Ministro Nome, Quarta Turma, julgado em 15/8/2023, DJe de 17/8/2023; AgInt no REsp n. 1.388.527/MT, relator Ministro Nome, Terceira Turma, julgado em 13/12/2021, DJe de 16/12/2021; e AgInt no AREsp n. 1.759.175/SP, relator Ministro Nome, Quarta Turma, julgado em 30/8/2021, DJe de 2/9/2021. 

  

Nos casos de indenização securitária por invalidez permanente, a teoria subjetiva da actio nata foi sedimentada na Súmula n. 278 desta Corte, segundo a qual," o termo inicial do prazo prescricional, na ação de indenização, é a data em que o segurado teve ciência inequívoca da incapacidade laboral ". 

  

Assim, a teoria subjetiva da actio nata estabelece que o prazo de prescrição para propor ação judicial começa a ser contado do momento em que o ofendido toma ciência da extensão do dano sofrido e de sua autoria. Essa teoria desempenha papel crucial na proteção dos direitos das vítimas, garantindo que tenham a oportunidade de buscar Justiça mesmo diante de circunstâncias que inicialmente dificultem o exercício de seus direitos. 

  

A teoria subjetiva da actio nata é especialmente relevante no contexto de abuso sexual infantil, em que, conforme ressaltado, o ofendido pode não ter plena consciência do dano sofrido até décadas após o ocorrido, quando o trauma começa a se manifestar de forma mais evidente. Nessa situação, a teoria subjetiva da actio nata permite que o prazo de prescrição inicie a partir do momento em que a vítima efetivamente tenha conhecimento dos efeitos decorrentes do abuso sexual, permitindo que busque a reparação legal. 

  

Ressalte-se que o transcurso do tempo em nada auxilia a vítima de violência sexual na infância. A dificuldade de comprovar a autoria dos fatos, o nexo causal e o dano, especialmente muitos anos após o ocorrido, é desafio complexo e multifacetado. Durante esse período, as evidências físicas podem desaparecer, testemunhas podem se tornar indisponíveis e documentos ou registros relevantes podem ser perdidos ou destruídos. 

  

No caso dos autos, a autora informa que, apesar de ter sofrido abuso sexual por parte de seu padrasto entre seus 11 (onze) e 14 (catorze) anos (de 1996 a 1999), apenas em 2019, por volta dos 34 (trinta e quatro) anos, as" memórias dos incontáveis abusos sexuais passaram a lhe causar crises de pânico e dores no peito a ponto de necessitar ir ao hospital. Para amenizar seu sofrimento, no ano de 2020, a requerente iniciou sessões de terapia, as quais ocorrem até a presente data, e ali descobriu que a causa de suas crises eram os abusos sexuais sofridos na juventude, conforme parecer técnico em anexo, realizado por sua psicóloga "(e-STJ, fl. 8). Em 8/2021, foi ajuizada ação de reparação civil por danos materiais e morais (e-STJ, fls. 1/8). 

  

Contudo, o Juízo de primeira instância reconheceu a prescrição do direito de ação da vítima ao completar 21 (vinte e um) anos, sem facultar-lhe a comprovação do ato ilícito, a responsabilidade do agente e o momento em que os distúrbios psicológicos decorrentes do crime - como pânico, ansiedade e depressão - tiveram início. 

  

Nada obstante, considerando a gravidade dos fatos narrados, a complexidade do dano causado e suas repercussões, com impacto permanente na vida tanto da vítima quanto de seus familiares, e o relevante bem jurídico tutelado - a integridade física, moral e psicológica -, é imperativo reconhecer que, nos casos de abuso sexual durante a infância e adolescência, o início do prazo prescricional não pode ser automaticamente vinculado à maioridade civil. Em vez disso, é essencial analisar o momento em que a vítima tomou plena ciência dos danos em sua vida, aplicando-se assim a teoria subjetiva da actio nata. 

  

Por essas razões, as instâncias de origem, ao empregarem a teoria objetiva da actio nata à responsabilidade civil por abuso sexual na infância e adolescência, violaram o disposto nos arts. 206, § 3º, V, e 189 do CC/2002. 

  

Diante do exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso especial para determinar o retorno dos autos ao Juízo de primeira instância, facultando às partes a produção de provas, devendo posteriormente ser analisada a prescrição sob a ótica da teoria subjetiva da actio nata. 

  

É como voto. 

  

CERTIDÃO DE JULGAMENTO 

  

QUARTA TURMA 

  

Número Registro: 2023/0139578-0 REsp 2.123.047 / SP PROCESSO ELETRÔNICO 

  

Números Origem: 10064693120218260286 20220000524886 

  

PAUTA: 05/03/2024 JULGADO: 23/04/2024 

  

Relator 

  

Exmo. Sr. Ministro Nome 

  

Presidente da Sessão 

  

Exmo. Sr. Ministro Nome 

  

Subprocurador-Geral da República 

  

Exmo. Sr. Dr. Nome 

  

Secretária 

  

Bela. Nome 

  

AUTUAÇÃO 

  

RECORRENTE : Nome 

  

ADVOGADOS : Nome - SP184877 Nome - SP386236 

  

RECORRIDO : Nome 

  

ADVOGADOS : Nome - SP087289 

  

Nome - SP249384 

  

ASSUNTO: DIREITO CIVIL - Responsabilidade Civil - Indenização por Dano Moral 

  

CERTIDÃO 

  

Certifico que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão: 

  

A QUARTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, em sessão de julgamento do dia 23/04/2024, por votação unânime, decidiu dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. 

  

Os Srs. Ministros Nome, Nome e Nome votaram com o Sr. Ministro Relator.Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nome.Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Nome.