Data de publicação: 09/09/2024
Tribunal: TJ-MG
Relator: Des.(a) Paulo Rogério de Souza Abrantes
(...) “O reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem requer maior cautela, a reclamar a produção de prova substancial e robusta, vez que reverbera diretamente na situação jurídica familiar, sem a presença da parte que supostamente constituiu diretamente o vínculo que se pretende ver reconhecido.” (...)
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM. POSSE DO ESTADO DE FILHO. DEMONSTRAÇÃO DA FILIAÇÃO POR AFETIVIDADE. PROVAS DOCUMENTAIS E TESTEMUNHAIS. COMPROVAÇÃO DA VONTADE DE REGISTRAR A FILHA SOCIOAFETIVA EM CARTÓRIO. DESNECESSIDADE. SITUAÇÃO DE FATO. RELAÇÃO FÁTICA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. - Recurso conhecido e provido.
(TJ-MG - Apelação Cível: 0006530-77.2019.8.13.0499, Relator: Des.(a) Paulo Rogério de Souza Abrantes (JD Convocado), Data de Julgamento: 02/02/2024, Câmara Justiça 4.0 - Especiali, Data de Publicação: 05/02/2024)
Inteiro Teor
Número do 1.0000.23.221638-2/001 Númeração 0006530-
Relator: Des.(a) Paulo Rogério de Souza Abrantes (JD
Relator do Acordão: Des.(a) Paulo Rogério de Souza Abrantes (JD
Data do Julgamento: 02/02/2024
Data da Publicação: 05/02/2024
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM. POSSE DO ESTADO DE FILHO. DEMONSTRAÇÃO DA FILIAÇÃO POR AFETIVIDADE. PROVAS DOCUMENTAIS E TESTEMUNHAIS. COMPROVAÇÃO DA VONTADE DE REGISTRAR A FILHA SOCIOAFETIVA EM CARTÓRIO. DESNECESSIDADE. SITUAÇÃO DE FATO. RELAÇÃO FÁTICA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
- Os laços afetivos não se restringem aos critérios biológicos, em verdade, podem até superá-los, já que a construção afetiva se dá por meio da convivência e não por mera correspondência genética.
- O artigo 1.593 do Código Civil, traz a possibilidade de reconhecimento de parentesco por via diversa da consanguínea.
- O reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem requer maior cautela, a reclamar a produção de prova substancial e robusta, vez que reverbera diretamente na situação jurídica familiar, sem a presença da parte que supostamente constituiu diretamente o vínculo que se pretende ver reconhecido.
- O estado de posse de filho está configurado quando demonstrados os requisitos de trato e fama, sendo o primeiro caracterizado por meio da assistência financeira, psicológica, moral e afetiva; ao passo que o segundo é a exteriorização do estado vindicado perante a sociedade.
- A falta de registro ou da vontade específica de registrar não invalida os laços emocionais e afetivos que estabelecem a filiação, os quais transcendem a formalidade documental, nem é requisito necessário para o reconhecimento da paternidade afetiva.
- Recurso conhecido e provido.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0000.23.221638-2/001 - COMARCA DE PERDÕES - APELANTE (S): A.S.M. - APELADO (A)(S): A.V.M., D.L.P.
ACÓRDÃO
(SEGREDO DE JUSTIÇA)
Vistos etc., acorda, em Turma, a Câmara Justiça 4.0 - Especializada Cível-4 do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em .
JD. CONVOCADO PAULO ROGÉRIO DE SOUZA ABRANTES
RELATOR
JD. CONVOCADO PAULO ROGÉRIO DE SOUZA ABRANTES (RELATOR)
VOTO
Cuida-se de recurso de apelação interposto por A.S.M. contra a sentença de ordem 42, proferida pelo Juízo da Vara Única da Comarca de Perdões que, nos autos da ação de reconhecimento de paternidade socioafetiva post mortem, proposta pela apelante contra o ESPÓLIO DE J.A.P., julgou improcedente o pedido.
Em suas razões recursais, a apelante alega que a sentença julgou improcedente o pedido, mas ficou comprovado nos autos que era filha socioafetiva do falecido.
Assevera que sua mãe se casou com o Sr. J. quando a apelante tinha apenas dois anos de idade e desde então passou a conviver com ele como se sua filha fosse.
Aduz que sua relação parental com o falecido era pública e notória e toda a sociedade a reconhecia como filha do falecido.
Com essas razões, pede o provimento do recurso para reformar a sentença e julgar procedente o pedido inicial.
Ausente o preparo, vez que a apelante é beneficiária já gratuidade judiciária.
Intimados, os apelados apresentaram contrarrazões (ordem 45), alegando que a relação da apelante com o falecido era apenas de padrasto e enteada; que após a separação da mãe da apelante e do falecido, eles nunca mais mantiveram contato; que o falecido nunca teve intenção de registrar a apelante como sua filha. Pedem o não provimento do recurso.
É o relatório.
Vieram-me os autos conclusos.
Conheço do recurso, vez que presentes os requisitos de admissibilidade.
Inexistindo preliminares, passo à análise do mérito recursal.
Cinge-se a controvérsia quanto a eventual desacerto da sentença que, nos autos da ação de reconhecimento de paternidade socioafetiva post mortem, proposta pela apelante contra o ESPÓLIO DE J. A. P., julgou improcedente o pedido.
A apelante alega que restou devidamente comprovado que era filha socioafetiva do falecido; que conviveu com ele desde seus dois anos de idade e que toda a sociedade a reconhecia como filha do Sr. J.
Os apelados, por sua vez, alegam que a apelante era enteada do falecido e que ele a tratava com amor e carinho, mas nunca teve a intenção de reconhecê-la como filha.
Inicialmente, importante salientar que, conforme já pacificado na jurisprudência pátria, "é possível o reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem, ou seja, mesmo após a morte do suposto pai socioafetivo". (STJ. 3a Turma. REsp 1.500.999-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 12/4/2016).
O parentesco socioafetivo possui amparo no Código Civil, o qual define:
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.
A doutrina ressalta que a configuração do estado familiar requer três requisitos:
Afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com desconsideração do móvel econômico; Estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de vida; Ostensibilidade, o que pressupõe uma unidade familiar que se apresente assim publicamente"(LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil - Famílias. São Paulo: ed. Saraiva, 7a ed., 2017.).
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça definiu, como elementos comprovantes da filiação socioafetiva, o tratamento como se filho fosse e o conhecimento público daquela condição, nos seguintes termos:
Informativo 581 do Superior Tribunal de Justiça:
DIREITO CIVIL. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM.
Será possível o reconhecimento da paternidade socioafetiva após a morte de quem se pretende reconhecer como pai. De fato, a adoção póstuma é prevista no ordenamento pátrio no art. 42, § 6º, do ECA, nos seguintes termos:
"A adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença."
O STJ já emprestou exegese ao citado dispositivo para permitir como meio de comprovação da inequívoca vontade do de cujus em adotar as mesmas regras que comprovam a filiação socioafetiva, quais sejam: o tratamento do adotando como se filho fosse e o conhecimento público daquela condição. Portanto, em situações excepcionais em que fica amplamente demonstrada a inequívoca vontade de adotar, diante da sólida relação de afetividade, é possível o deferimento da adoção póstuma, mesmo que o adotante não tenha dado início ao processo formal para tanto (REsp 1.326.728-RS, Terceira Turma, DJe 27/2/2014).
Tal entendimento consagra a ideia de que o parentesco civil não advém exclusivamente da origem consanguínea, podendo florescer da socioafetividade, o que não é vedado pela legislação pátria, e, portanto, plenamente possível no ordenamento (REsp 1.217.415-RS, Terceira Turma, DJe 28/6/2012; e REsp 457.635-PB, Quarta Turma, DJ 17/3/2003).
Aliás, a socioafetividade é contemplada pelo art. 1.593 do CC, no sentido de que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou outra origem". Válido mencionar ainda o teor do Enunciado n. 256 da III Jornada de Direito Civil do CJF, que prevê:
"A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil."
Ademais, a posse de estado de filho, segundo doutrina especializada, "liga-se à finalidade de trazer para o mundo jurídico uma verdade social. Aproxima-se, assim, a regra jurídica da realidade. Em regra, as qualidades que se exigem estejam presentes na posse de estado são: publicidade, continuidade e ausência de equívoco". E salienta que "a notoriedade se mostra na objetiva visibilidade da posse de estado no ambiente social; esse fato deve ser contínuo, e essa continuidade, que nem sempre exige atualidade, [...] deve apresentar uma certa duração que revele estabilidade". Por fim, registre-se que a paternidade socioafetiva realiza a própria dignidade da pessoa humana, por permitir que um indivíduo tenha reconhecido seu histórico de vida e a condição social ostentada, valorizando, além dos aspectos formais, como a regular adoção, a verdade real dos fatos. (REsp 1.500.999-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/4/2016, DJe 19/4/2016).
Com efeito, nos dias atuais, é notório o fato de que a paternidade afetiva vem assumindo grande importância, já que a posse do estado de filho é que gera os efeitos jurídicos capazes de definir a filiação. Em outros termos, a filiação não decorre apenas de vínculos sanguíneos, mas, sobretudo, das relações afetivas.
Segundo a perspectiva mais moderna do Direito de Família, quando há conflito entre a filiação biológica e a socioafetiva, em regra, a primazia será desta, uma vez que, normalmente, é por intermédio do afeto que se concretiza a dignidade da pessoa humana, devendo o julgador se ater a cada caso concreto.
De destacar que o elemento socioafetivo foi elevado a valor jurídico pela Constituição da Republica de 1988, com o intuito de possibilitar o reconhecimento pela ordem jurídica de situações fáticas que antes ficavam desprotegidas, estando tutelado, inclusive, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), em seus artigos 28 a 52, ao tratar das famílias substitutas.
Sobre o tema, leciona Rodrigo da Cunha Pereira, in Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família, Editora Del Rey, pp. 183 e ss:
"Uma das mais relevantes conseqüências do Princípio da Afetividade encontra-se na jurisdicização da paternidade socioafetiva que abrange os filhos de criação. Isso porque o que garante o cumprimento das funções parentais não é a similitude genética ou a derivação sanguínea, mas sim o cuidado e o desvelo dedicado aos filhos."
(...)
"A paternidade socioafetiva está alicerçada na posse de estado de filho, que nos remete à clássica tríade nomen tractus e fama. Assim, para que haja a posse de estado, neste diapasão, é necessário que o menor carregue o nome da família, seja tratado como filho e que sua condição oriunda da filiação seja reconhecida socialmente. É esse tripé que garante a experiência de família e nele o pressuposto do afeto."
No caso, a autora/apelante juntou as fotos de ordem 03, que comprovam a convivência entre a apelante e o falecido desde a infância, englobando diversas fases da vida, como a pré-adolescência, festa de 15 (quinze) anos, eventos na escola, viagens, aniversários, finais de semana em família etc. Em todas as fotos, a apelante e o falecido posam como pai e filha, juntamente com o irmão da apelante de nome E., não sendo possível aferir nenhum tipo de diferenciação de relacionamento ou da afetividade entre a apelante e seu irmão, que é filho biológico do falecido.
A apelante também juntou aos autos cartas e desenhos infantis que faziam referência à figura paterna, normalmente produzidos nas escolas para serem entregues aos pais como lembrança nos dias dedicados a eles. No entanto, apesar de tais cartas não conterem informações explícitas sobre o destinatário, a análise do conjunto de provas nos autos, inclusive o depoimento da testemunha da apelante, que atuava como diretora da escola, sugere fortemente que esses desenhos e cartas foram elaborados pela apelante para o falecido.
Além da prova documental supra assinalada, foi produzida prova oral, consistente no depoimento pessoal das testemunhas, que passo a analisar.
A primeira testemunha da apelante, Sra. D. A. F., afirmou o seguinte:
Que conhece a A. desde a primeira série, quando tinha uns cinco anos; que foram colegas de escola até o terceiro ano do ensino médio; que conheceu o Z. e ele era o pai da A.; que a A. chamava o Z. de papai; que ele sempre tratou a A. como filha; que a depoente frequentava a casa da A. e que o relacionamento dela com o Z. era de pai e filha; que ficou sabendo depois que a A. tinha um outro pai registral; que o Z. e a mãe da apelante é que sustentavam ela; que a A. tinha uma relação de irmã com a D.; que não se lembra se o Z. tinha interesse de registrar a A. como filha; que sempre teve pra si que o Z. era o pai da A.; que na cidade de Perdões é público e notório que o Z. era o pai da A.; que a mãe da apelante morava com o Z.; que após a separação da mãe da apelante com o falecido a A. ainda conviveu com o Z., pois ia lá na casa dele; que estudou com a A. até o ano de 2013; que após a separação Z. morava em um morrão perto do bar lá embaixo.
A segunda testemunha da apelante, Sra. L. A. P., afirmou:
Que é prima da Dani e do E.; que o Z. era seu tio; que o pai da depoente era irmão do Z. ; que conhece a A. desde que nasceu; que ia mais na casa deles até uns 2/3 anos, pois seu pai era muito próximo do Z. ; que a convivência da
A. com o Z. era de pai e filha; que a A. chamava o Z. de papai, mas não prestava muita atenção de como o Z. chamava a A.; que já ouviu comentários dentro de sua casa de que o Z. iria registrar a A.; que o Z. que ia na escola no Dia dos Pais e nas festividades da A.; que trabalhou na mercearia do Z. por mais de três anos; que nunca conheceu uma pessoa de nome A.; que na cidade de Perdões é público e notório que o pai da A. é o Z.; que depois que o Z. separou da mãe da apelante, a relação dela com o Z. permaneceu normal; que sempre via eles juntos, mesmo depois da separação.
Já a terceira testemunha da apelante, Sra. C. M. P. da C., disse:
Que conhece a A. da escola, pois era a supervisora da escola em que ela e seu irmão E. estudaram; que a mãe da apelante e o Z., padrasto dela, é que compareciam na escola para resolver as pendências; que o relacionamento deles era de pai e filha; que até então não sabia que a A. tinha outro pai; que o pai registral da A. nunca compareceu na escola; que para todo mundo lá na escola o Z. é que era o pai da A.; que a A. trabalhava na mercearia do Z. ; que em Perdões é público e notório que o pai da A. era o Z.; que só foi saber que a A. tinha outro pai quando ficou sabendo da presente ação; que não existia nenhuma diferença entre os tratamentos do Z. com o E. e com a A.; que tem 10 anos que se aposentou; que nas reuniões da escola, para ir buscar e quando os meninos adoeciam, o Z. que ia na escola; que não sabe o que aconteceu depois da separação do Z. com a mãe da apelante.
A primeira testemunha dos apelados, Sr. P. F. de S. n., afirmou:
Que conhece a A., de quando ela foi lá pro bairro com o pai dela, pai dela não, o Z.; que ela foi morar lá no bairro porque o Z. juntou com a mãe dela; que a A. é filha do A.; que a A. morava com o Z. e ele é quem cuidava da casa; que não sabe nem como dizer como era o relacionamento do Z. e da A.; que a A. chamava ele de pai, mas não sabe se o Z. chamava ela de filha; que não sabe dizer se ele tratava a A. como pai ou como padrasto; que o A. pagava pensão pra A.; que não ouviu dizer se o Z. iria reconhecer a A. como filha; que depois da separação da mãe da apelante com o Z., a A. não foi mais lá; que o Z. passou muito tempo morando sozinho dentro do bar; que sabe que a A. fez faculdade, mas não sabe o período; que o Z. e o A. foram seus colegas de escola; que trabalhava na casa do R. e o A. morava no fundo da casa do R. e lhe confidenciou que pagava pensão para a A..
A segunda testemunha dos apelados, Sra. A. Cr. P. S., disse:
Que conheceu o Z. desde jovem; que morava perto do último endereço dele; que ficou sabendo que o Z. teve três relacionamentos, a primeira esposa de nome J., depois a J. e depois essa última de agora; que conhecia só a mãe da apelante e não sabe se ela já tinha uma filha; que nem sabia que ela tinha filho; que não conhece a A.; que não via a A. lá na casa do Z.; que veio saber agora que tinha a A.; que conhecia o E. porque ele era amigo de seu filho.
A terceira testemunha dos apelados, Sra. D. A. M., afirmou:
Que conheceu o Z. quando casou com seu marido, o que tem onze anos; que depois de um tempo ele juntou com a M., que é prima do depoente; que a partir daí passou a conviver com o Z.; que conhece a A. da loja, da rua, mas não sabe nada da vida dela; que a A. é filha da J., que teve um relacionamento com o Z.; que não teve contato com o Z. durante seu relacionamento com a J.; que o filho da depoente também não é filho do seu marido e quando saía com o Z. lá na sua casa surgia esse assunto de que pai é quem cria; que a depoente discordava e dizia que pai é o de sangue e que o Z. sempre ficava do seu lado nessa opinião; que ele falava que pai é o pai de sangue e não o pai que cria; que ele comentava que criou a A., mas que depois ela virou a cara pra ele e não quis conviver mais; que ele falava que criou a menina e depois ela nem quis mais saber dele; que a vontade do Z. nunca foi de assumir a A.; que ele dizia que os filhos deles eram o E. a D. e a A.; que esses comentários que ouviu do Z. eram nos momentos que eles saíam; que eles saiam de casal e esses comentários ocorriam quando eles estavam juntos; que só conheceu o Z. depois que casou com seu marido K.; que também nem sabia do E. e só foi conhecer ele hoje no depoimento; que conheceu o Z. tem uns 10 anos, mas só passou a conviver com ele frequentemente, depois que ele casou com a M.; que não sabe se a A. estava no velório do Z.; que não conhecia a J. e só foi conhecer ela depois.
Da análise dos depoimentos das testemunhas e da gravação da audiência o que se percebe é que as afirmações das primeiras três testemunhas são diretas, certas, seguras e congruentes, além de serem harmônicas entre si e demonstrarem a mesma realidade fática, o que não pode ser dito sobre o depoimento das testemunhas dos apelados.
Isto porque, a primeira testemunha dos apelados, inicialmente se referiu ao falecido como pai da apelante, de forma natural e automática, mas logo em seguida pensou melhor e se corrigiu. Durante seu depoimento afirmou que a A. chamava o falecido de pai e logo em seguida disse" isso não tem como negar ", o que demonstra uma certa fragilidade de suas demais afirmações. Ele também não soube dizer como era o relacionamento entre as partes, furtando-se da pergunta com respostas genéricas e redundantes, mas afirmou que a A. morava com o Z. e que ele é quem cuidava da casa. Assim, o seu depoimento corrobora alguns pontos da narrativa da apelante, mas não é capaz de desconstituir a relação de filiação demonstrada pelos documentos e pelos depoimentos das testemunhas anteriores.
A segunda testemunha dos apelados, por sua vez, sequer tinha conhecimento dos fatos e foi rapidamente dispensada pelo juízo de primeira instância, vez que nada tinha a esclarecer.
A terceira testemunha dos apelados, embora tenha sido firme em suas declarações, afirmou ter conhecido o falecido apenas anos após a separação dele da mãe da apelante. Ela mencionou que começou a conviver mais com ele somente depois que ele iniciou um novo relacionamento com M. Além disso, fica evidente em seu depoimento que seus encontros com o falecido eram predominantemente em momentos de lazer e reuniões sociais, não estabelecendo um convívio íntimo e familiar nem possuindo conhecimento detalhado sobre a vida do falecido.
A testemunha afirma que a apelante não teve mais contato com o falecido após a separação dele de J., mas em seguida admite desconhecer a existência do filho biológico do falecido, E.. Isso demonstra que a testemunha tinha conhecimento apenas de uma parte da vida do falecido, aquela que ele aparentava nos encontros sociais com casais de amigos, e não possuía informações abrangentes sobre sua vida familiar ou pessoal.
Sendo assim, analisando os documentos e os depoimentos das testemunhas de forma sistêmica, constata-se que as provas são muito mais firmes no sentido de que a apelante e o falecido conviveram como pai e filha e que tal relacionamento permaneceu mesmo após a separação da mãe da apelante e do senhor J., do que no sentido da ausência de socioafetividade.
De todo modo, é importante ressaltar que, embora o relacionamento entre a apelante e o senhor J. tenha se tornado mais esporádico e menos intenso após o término da união estável dele com a mãe da apelante, esse fato não tem o poder de invalidar um vínculo de filiação estabelecido, cultivado e fortalecido ao longo de toda a infância, pré-adolescência e adolescência da recorrente.
Além disso, é inquestionável nos autos que a apelante frequentou a faculdade na cidade de São João Del Rei, o que justifica uma menor convivência durante esse período. É natural nas relações entre pais e filhos que a convivência se reduza diante de certas circunstâncias da vida, sendo inevitável em alguns casos. No entanto, essa diminuição da convivência não implica que o vínculo de filiação deixe de existir ou se enfraqueça.
Portanto, entendo que ficou suficientemente comprovado nos autos que a relação vivida entre a apelante e o senhor J. era de pai e filha e não somente de padrasto e enteada, não tendo os apelados logrado êxito em comprovar, de forma satisfatória, algum fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da autora, ora apelante, que, por sua vez, comprovou os fatos constitutivos de seu direito por meio das provas documentais e das três testemunhas arroladas.
Por último, é importante ressaltar que a sentença em questão sustentou a visão de que não foi possível comprovar a intenção do falecido de reconhecer a apelante como sua filha, argumentando que se ele desejasse tal registro, o teria feito em vida. Entretanto, a exigência de formalização da paternidade se mostra incongruente com a própria natureza e necessidade da ação, porque trilhar por este caminho mais fácil sempre conduzirá à improcedência do pedido, por falta do reconhecimento formal.
Demais disto, a própria existência da paternidade socioafetiva evidencia que as relações reais nem sempre são oficializadas, e a falta de registro não invalida os laços emocionais e afetivos que estabelecem a filiação, os quais transcendem a formalidade documental.
Com efeito, a convivência prolongada mencionada nos depoimentos e os relatos de cuidado mútuo, assistência financeira e tratamento de pai para filha demonstram uma relação afetiva e de responsabilidade entre eles, transcendendo os laços biológicos, consoante depoimentos citados.
Dessa forma, a paternidade socioafetiva - reconhecida pelos Tribunais Superiores como modalidade de paternidade que gera obrigações e deveres - deve ser lida sob a ótica da afetividade, do carinho, da proximidade, do amor que não se impõe, mas que se constrói a partir da predisposição de pai e filho, pautado pelo desejo indesviável de ser pai e de ser filho, fruto da vontade e não do arbítrio. (MADALENO, Ralf. Direito de Família. 11a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 539 usque 541.)
Assim, após analisar os depoimentos das testemunhas e documentos juntados nos autos, é possível constatar a existência de uma consistente relação familiar de paternidade socioafetiva entre a apelante e o falecido Sr. J.A.P., devendo, pois, ser reformada a sentença que julgou improcedente o pedido.
Em casos semelhantes já decidiu este Eg. Tribunal de Justiça:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO DE FAMÍLIA - AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM - STATUS DE FILHO DEMONSTRADO - PROVAS TESTEMUNHAIS CONSISTENTES - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO.
1. Na" filiação real "que decorre das relações afetivas, desvinculada de fatores genéticos, é imprescindível a prova da relação pai/mãe e filho, constituída por meio da demonstração de que havia profundo afeto no seio da família socioafetiva, típico de relações familiares.
2. O reconhecimento da paternidade/maternidade socioafetiva post mortem requer maior cautela, a reclamar a produção de prova substancial e robusta, vez que reverbera diretamente na situação jurídica familiar, sem a presença da parte que supostamente constituiu diretamente o vínculo que se pretende ver reconhecido.
3. O estado de posse de filho resta configurado quando demonstrados os requisitos de trato e fama, sendo o primeiro caracterizada por meio da assistência financeira, psicológica, moral e afetiva; ao passo que o segundo é a exteriorização do estado vindicado perante a sociedade.
(TJMG - Apelação Cível 1.0000.22.234441-8/001, Relator (a): Des.(a) Francisco Ricardo Sales Costa (JD Convocado), Câmara Justiça 4.0 - Especiali, julgamento em 16/12/2022, publicação da súmula em 16/12/2022)
À luz de tais considerações, DOU PROVIMENTO AO RECURSO para reformar a sentença e julgar procedente o pedido inicial para reconhecer o vínculo de paternidade socioafetiva entre A.S.M. e J.A.P. para todos os fins de direito.
Tendo em vista a reforma da sentença, observa-se que a apelante não decaiu em seus pedidos, devendo os ônus sucumbenciais serem alterados para que os réus, ora apelados, arquem com as custas e honorários, nos termos em que fixados na sentença, suspensa a exigibilidade caso sejam beneficiários da gratuidade judiciária.
Custas, despesas e honorários recursais pelos apelados, suspensa a exigibilidade caso sejam beneficiários da gratuidade judiciária.
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DES. PEDRO BITENCOURT MARCONDES - De acordo com o (a) Relator (a). DES. LEITE PRAÇA - De acordo com o (a) Relator (a).
SÚMULA:"DERAM PROVIMENTO AO RECURSO"