Data de publicação: 24/06/2024
Tribunal: TJ-PA
Relator: LEONARDO DE NORONHA TAVARES
(...) “A destituição do poder familiar prevista no artigo 1.638 do Código Civil constitui-se em medida extrema capaz de gerar impactos de ordem psicológica na vida dos genitores e dos menores e somente deve ser decretada em situações extremamente necessárias. Tais ações devem assegurar sempre o melhor interesse da criança e do adolescente.” (...)
DIREITO CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR C/C ADOÇÃO UNILATERAL. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE AUTORIZEM A DESTUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. ART. 1638 DO CÓDIGO CIVIL. MEDIDA EXCEPCIONAL. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. VÍNCULO AFETIVO E MATERIAL COMPROVADO. ADOÇÃO. POSSIBILIDADE. MULTIPARENTALIDADE. CABIMENTO. DESPROVIMENTO DO RECURSO. 1. A destituição do poder familiar prevista no artigo 1.638 do Código Civil constitui-se em medida extrema capaz de gerar impactos de ordem psicológica na vida dos genitores e dos menores e somente deve ser decretada em situações extremamente necessárias. Tais ações devem assegurar sempre o melhor interesse da criança e do adolescente. In casu, ausente a comprovação de causa de destituição do poder familiar prevista nos artigos 1.638 do Código Civil e 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a fim de resguardar o direito à própria origem e à manutenção dos vínculos naturais. 2. O instituto da multiparentalidade permite a adoção da criança pelo pai socioafetivo sem excluir o vínculo biológico paterno. 3. Desprovimento do recurso de Apelação, à unanimidade.
(TJ-PA - APELAÇÃO CÍVEL: 0003081-22.2018.8.14.0046, Relator: LEONARDO DE NORONHA TAVARES, Data de Julgamento: 27/11/2023, 1ª Turma de Direito Privado)
Inteiro Teor
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ
APELAÇÃO CÍVEL (198) - 0003081-22.2018.8.14.0046
APELANTE: M. D. S. F.
APELADO: C. C.
RELATOR (A): Desembargador LEONARDO DE NORONHA TAVARES
EMENTA
DIREITO CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR C/C ADOÇÃO UNILATERAL. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE AUTORIZEM A DESTUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. ART. 1638 DO CÓDIGO CIVIL. MEDIDA EXCEPCIONAL. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. VÍNCULO AFETIVO E MATERIAL COMPROVADO. ADOÇÃO. POSSIBILIDADE. MULTIPARENTALIDADE. CABIMENTO. DESPROVIMENTO DO RECURSO.
1. A destituição do poder familiar prevista no artigo 1.638 do Código Civil constitui-se em medida extrema capaz de gerar impactos de ordem psicológica na vida dos genitores e dos menores e somente deve ser decretada em situações extremamente necessárias. Tais ações devem assegurar sempre o melhor interesse da criança e do adolescente. In casu, ausente a comprovação de causa de destituição do poder familiar prevista nos artigos 1.638 do Código Civil e 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a fim de resguardar o direito à própria origem e à manutenção dos vínculos naturais.
2. O instituto da multiparentalidade permite a adoção da criança pelo pai socioafetivo sem excluir o vínculo biológico paterno.
3. Desprovimento do recurso de Apelação, à unanimidade.
RELATÓRIO
SECRETARIA ÚNICA DE DIREITO PÚBLICO E PRIVADO
1ª TURMA DE DIREITO PRIVADO
COMARCA DE RONDON DO PARÁ/PA
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0003081-22.2018.8.14.0046
APELANTE: M. D. S. F.
APELADO: C. C.
RELATOR: DES. LEONARDO DE NORONHA TAVARES
RELATÓRIO
O EXMO. SR. DESEMBARGADOR LEONARDO DE NORONHA TAVARES. (RELATOR):
Trata-se de APELAÇÃO CÍVEL interposta por M. D. S. P. em face da r. sentença (Id. 13536817 e Id. 13536818) proferida pelo MM. Juízo de Direito da 1ª Vara Cível da Comarca de Rondon do Pará que, nos autos da AÇÃO E DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR C/C ADOÇÃO UNILATERAL E PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA DE URGÊNCIA, julgou parcial procedente o pedido contido na inicial, declarando a paternidade do requerente, sem acolher o pedido de destituição do poder familiar do requerido.
Em suas razões (Id. 13536818), o apelante narrou que sua atual esposa foi casada com o requerido, ora apelado, por um ano, união da qual sobreveio o nascimento da menor, a qual pleiteou a sua adoção e a destituição do poder familiar do recorrido.
Relatou que passou a conviver com a sua atual esposa logo após o nascimento da infante, sendo sempre sua referência paterna e o responsável por suprir todas as suas necessidades afetivas e materiais.
Sustentou o desinteresse do apelado na vida da criança, elencando que não fez questão de comparecer à audiência de divórcio, onde possivelmente seriam regulamentados direito de visita, pensão alimentícia e outros assuntos de seu interesse paterno, assim como não teria comparecido na audiência que discute a destituição de seu poder familiar.
Pontuou que a infante já é sua dependente legal junto ao órgão de trabalha, bem como figura como sua dependente em suas declarações de imposto de renda.
Destacou que o apelado teria alegado em contestação que acompanha o crescimento da filha, mas que não teria prestado qualquer auxílio material para sua filha durante esses anos, além do fato de a menor ter reconhecido como pai o apelante em seu depoimento, afirmando não conhecer o apelado.
Alegou que se um dos genitores descumprir, injustificadamente, os deveres e obrigações a que alude o art. 22 do ECA, ou se incorrer em alguma das hipóteses do art. 1.0638 do Código Civil, perderá, por ato judicial, o poder familiar, hipótese em que se deverá priorizar o ajustamento do infante.
Alegou que a resistência do pai biológico nos autos, pois não teria demonstrado nenhum interesse real pela filha, devendo prevalecer o interesse dessa, que se encontra devidamente integrada no seio familiar, formado pelo apelante, sua mãe e o seu irmão.
Ao final, pugnou pelo conhecimento e provimento do recurso, a fim de que a sentença seja reformada para que haja a adoção unilateral da infante, retirando o nome do pai biológico e acrescido o nome de família do apelante.
Sem contrarrazões, consoante certidão de Id. 13536827.
Encaminhados os autos a esta e. Corte de Justiça, coube-me a relatoria do feito.
Instado a se manifestar, o Ministério Público Estadual opinou pelo conhecimento e desprovimento do recurso (Id. 14816628).
É o breve relato, síntese do necessário.
Incluindo o feito em pauta de julgamento (PLENÁRIO VIRTUAL).
VOTO
O EXMO. SR. DESEMBARGADOR LEONARDO DE NORONHA TAVARES (RELATOR):
Presentes os pressupostos de sua admissibilidade, conheço do recurso de apelação.
Cuida-se de ação de adoção unilateral e destituição de poder familiar ajuizada por M. D. S. F. em face de C. C., pai biológico da menor A. L. L. C.
Primeiramente, consigno que em todas as questões relativas a menores, deve-se adotar como critério primordial o melhor interesse da criança.
Sobre a matéria, a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente conferem proteção integral às crianças e adolescentes, que devem ter seu direito à vida, à saúde e à dignidade, dentre outros, assegurados com absoluta prioridade pela família, que possui o inafastável dever de mantê-los à salvo de qualquer forma de negligência:
Constituição Federal:
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Estatuto da Criança e do Adolescente:
“Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
[...]”
“Art. 3º A criança e ao adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.”
“Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”
E a lei atribuiu aos genitores o chamado poder familiar (artigo 1.634 do Código Civil), só autorizando sua retirada em situações extremas, quando há o descumprimento dos deveres inerentes a esse mesmo poder através de procedimento especial, sob o crivo do contraditório, nos termos do art. 1.638 do Código Civil c/c os arts. 22 a 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.096/90):
“Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - Castigar imoderadamente o filho;
II - Deixar o filho em abandono;
III - Praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - Incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
V- Entregar de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção "
“Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.”
“Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar.
§ 1º Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio.
§ 2º A condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso, sujeito à pena de reclusão, contra o próprio filho ou filha.”
“Art. 24. A perda e a suspensão do pátrio poder familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22."
A suspensão ou destituição do poder familiar, embora medida excepcional, é justificável nas hipóteses em que verificado o abuso ou inobservância dos deveres paternos, de modo que atentam contra os valores e os direitos fundamentais dos filhos cuja integridade aos pais incumbia preservar e desenvolver.
Ao exame do que consta nos autos, na mesma direção da conclusão externada na r. sentença recorrida, entendo que não se encontram suficientemente demonstrados fatos que determinem a decretação da perda do poder familiar do genitor.
Não foram amealhados elementos de prova seguros e incontestes a respeito de o genitor ter descumprido, de forma contínua, irrecuperável e injustificável, quaisquer dos deveres inerentes ao poder familiar previstos no artigo 1.638 do Código Civil e artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Logo, não há evidências de que a relação seja negativa ou ameaçadora para a criança, a ponto de justificar uma destituição do poder familiar.
Não obstante ter sido possível notar que o requerido não mantém contato regular com a filha, avalio que a destituição do poder familiar em relação ao genitor biológico é medida extrema, necessitando de cautela. No entanto, é possível perceber que o pai tem interesse na vida da filha, uma vez que juntou fotos em várias fases da vida da menor, bem como em fornecer pensão alimentícia, apesar de a genitora se contrapor, mesmo afirmando que não era dado o apoio material pelo genitor.
Considerando, assim, a ausência de fatos que determinem a destituição do poder familiar do apelado, entendo que a manutenção do vínculo sanguíneo permitirá a menor saber e vivenciar a sua história, para ter condições de escolher, no momento oportuno, conviver, ou não, com o genitor e a família paterna, evitando-se rupturas precipitadas da paternidade natural com custos emocionais elevadíssimo e irreparáveis, caso concedida a adoção unilateral pleiteada. No mesmo sentido, cito a jurisprudência pátria:
“APELAÇÃO. RELAÇÃO DE PARENTESCO. AÇÃO DE ADOÇÃO E DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR PATERNO. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS PARA DESTITUIR O PODER FAMILIAR DO PAI BIOLÓGICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CONCOMITANTE COM O VÍNCULO BIOLÓGICO. SENTENÇA QUE DETERMINOU A ADOÇÃO DA CRIANÇA PELO PAI SOCIOAFETIVO SEM EXCLUIR O VÍNCULO BIOLÓGICO PATERNO. CABIMENTO. TESE DE REPERCUSSÃO GERAL FIXADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO JULGAMENTO DO RE Nº 898.060. MULTIPARENTALIDADE. PRECEDENTES DOS TRIBUNAIS SUPERIORES E DESTA CÂMARA. SENTENÇA MANTIDA. APELO DESPROVIDO.”
(TJ-RS - AC: 70077152056 RS, Relator: Jorge Luís Dall'Agnol, Data de Julgamento: 29/08/2018, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 03/09/2018)
“Apelação – Ação de Destituição do Poder Familiar cumulada com Adoção Unilateral – Sentença de procedência – Inconformismo do pai biológico – Acolhimento - Destituição do poder familiar e adoção, que são medidas excepcionais e que somente podem ser aplicadas, quando inviável o restabelecimento dos vínculos da família natural e, exclusivamente, em prol dos supremos interesses da criança ou adolescente – Ausência de comprovação de causa de destituição do poder familiar prevista nos artigos 1.638 do Código Civil e 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente – Prova pericial que não sugere a ruptura dos vínculos com o genitor - Melhor interesse do menor que, no caso, compreende o direito à própria origem e à manutenção dos vínculos naturais – Sentença de procedência reformada - Ação julgada improcedente - Recurso provido.”
(TJ-SP - AC: 10365679820198260114 SP 1036567-98.2019.8.26.0114, Relator: Guilherme Gonçalves Strenger (Vice-presidente), Data de Julgamento: 09/05/2022, Câmara Especial, Data de Publicação: 09/05/2022)
Igualmente, escorreita a sentença em permitir a adoção da menor pelo requerente, uma vez que evidente o vínculo afetivo existente entre eles, assim como a prestação material dada.
Nesse contexto, adequada a aplicação ao caso do instituto da multiparentalidade, como feito pelo juízo de origem, visando o melhor interesse da criança. O referido instituto possibilita o reconhecimento concomitante do genitor biológico, como daquele que ama, cuida e educa a criança como se filha fosse, ou seja, o pai afetivo.
A propósito, o Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060-SC, com repercussão geral (tema 622), fixou entendimento pelo cabimento da multiparentalidade, assentando que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. Cabe ressaltar que, no referido julgamento, a o STF entendeu que, naquele caso concreto, não havia como escolher qual a paternidade prevalente – biológica ou socioafetiva –, motivo pelo qual ambas deveriam constar no assento de nascimento da parte autora, o que entendo se adequar ao caso em tela. A ementa do julgado restou assim redigida:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. CONFLITO ENTRE PATERNIDADES SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA. PARADIGMA DO CASAMENTO. SUPERAÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. EIXO CENTRAL DO DIREITO DE FAMÍLIA: DESLOCAMENTO PARA O PLANO CONSTITUCIONAL. SOBREPRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA (ART. 1º, III, DA CRFB). SUPERAÇÃO DE ÓBICES LEGAIS AO PLENO DESENVOLVIMENTO DAS FAMÍLIAS. DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO. INDIVÍDUO COMO CENTRO DO ORDENAMENTO JURÍDICO-POLÍTICO. IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DAS REALIDADES FAMILIARES A MODELOS PRÉ-CONCEBIDOS. ATIPICIDADE CONSTITUCIONAL DO CONCEITO DE ENTIDADES FAMILIARES. UNIÃO ESTÁVEL (ART. 226, § 3º, CRFB) E FAMÍLIA MONOPARENTAL (ART. 226, § 4º, CRFB). VEDAÇÃO À DISCRIMINAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO ENTRE ESPÉCIES DE FILIAÇÃO (ART. 227, § 6º, CRFB). PARENTALIDADE PRESUNTIVA, BIOLÓGICA OU AFETIVA. NECESSIDADE DE TUTELA JURÍDICA AMPLA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS PARENTAIS. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE. PLURIPARENTALIDADE. PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL (ART. 226, § 7º, CRFB). RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. FIXAÇÃO DE TESE PARA APLICAÇÃO A CASOS SEMELHANTES. 1. O prequestionamento revela-se autorizado quando as instâncias inferiores abordam a matéria jurídica invocada no Recurso Extraordinário na fundamentação do julgado recorrido, tanto mais que a Súmula n. 279 desta Egrégia Corte indica que o apelo extremo deve ser apreciado à luz das assertivas fáticas estabelecidas na origem. 2. A família, à luz dos preceitos constitucionais introduzidos pela Carta de 1988, apartou-se definitivamente da vetusta distinção entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos que informava o sistema do Código Civil de 1916, cujo paradigma em matéria de filiação, por adotar presunção baseada na centralidade do casamento, desconsiderava tanto o critério biológico quanto o afetivo. 3. A família, objeto do deslocamento do eixo central de seu regramento normativo para o plano constitucional, reclama a reformulação do tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobre princípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB) e da busca da felicidade. 4. A dignidade humana compreende o ser humano como um ser intelectual e moral, capaz de determinar-se e desenvolver-se em liberdade, de modo que a eleição individual dos próprios objetivos de vida tem preferência absoluta em relação a eventuais formulações legais definidoras de modelos preconcebidos, destinados a resultados eleitos a priori pelo legislador. Jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão (BVerfGE 45, 187). 5. A superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias construídas pelas relações afetivas interpessoais dos próprios indivíduos é corolário do sobre princípio da dignidade humana. 6. O direito à busca da felicidade, implícito ao art. 1º, III, da Constituição, ao tempo que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhece as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares. Precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos da América e deste Egrégio Supremo Tribunal Federal: RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 26/08/2011; ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 14/10/2011. 7. O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero instrumento de consecução das vontades dos governantes, por isso que o direito à busca da felicidade protege o ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a sua realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei. 8. A Constituição de 1988, em caráter meramente exemplificativo, reconhece como legítimos modelos de família independentes do casamento, como a união estável (art. 226, § 3º) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, cognominada “família monoparental” (art. 226, § 4º), além de enfatizar que espécies de filiação dissociadas do matrimônio entre os pais merecem equivalente tutela diante da lei, sendo vedada discriminação e, portanto, qualquer tipo de hierarquia entre elas (art. 227, § 6º). 9. As uniões estáveis homoafetivas, consideradas pela jurisprudência desta Corte como entidade familiar, conduziram à imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil (ADI nº. 4277, Relator (a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011). 10. A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais, (ii) pela descendência biológica ou (iii) pela afetividade. 11. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser. 12. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio). 13. A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos. 14. A pluriparentalidade, no Direito Comparado, pode ser exemplificada pelo conceito de “dupla paternidade” (dual paternity), construído pela Suprema Corte do Estado da Louisiana, EUA, desde a década de 1980 para atender, ao mesmo tempo, ao melhor interesse da criança e ao direito do genitor à declaração da paternidade. Doutrina. 15. Os arranjos familiares alheios à regulação estatal, por omissão, não podem restar ao desabrigo da proteção a situações de pluriparentalidade, por isso que merecem tutela jurídica concomitante, para todos os fins de direito, os vínculos parentais de origem afetiva e biológica, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos sujeitos envolvidos, ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º). 16. Recurso Extraordinário a que se nega provimento, fixando-se a seguinte tese jurídica para aplicação a casos semelhantes: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (RE n. 898.060-SC, Tribunal Pleno do STF, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 24/08/2017)
Ante o exposto, conheço do recurso e, nos termos do parecer do Ministério Público, NEGO-LHE PROVIMENTO para manter integralmente a sentença recorrida.
É o meu voto.
Belém, data registrada no sistema.
LEONARDO DE NORONHA TAVARES
RELATOR
Belém, 06/12/2023