#1 - Famílias simultâneas. Reconhecimento de sociedade conjugal. Nova partilha de bens e pedido de registro da discussão nas matrículas imobiliárias

Data de publicação: 30/05/2023

Tribunal: TJ-PR

Relator: Eduardo Augusto Salomão Cambi

Chamada

(...) ''Famílias simultâneas ou paralelas se caracterizam pela circunstância de uma pessoa que, ao mesmo tempo, se coloca como membro de duas ou mais entidades familiares. Todavia, o reconhecimento jurídico destas famílias – resultantes da coexistencialidade e desde que fundadas na estabilidade, ostensibilidade, continuidade e publicidade – não se confundem com a situação dos relacionamentos clandestinos, nem com as relações afetivas casuais, livres, descomprometidas, sem comunhão de vida, atentatórias da dignidade, desonestas ou desprovidas de boa-fé em sentido objetivo''

Ementa na Íntegra

DIREITO DAS FAMÍLIAS. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS. RECONHECIMENTO JURÍDICO. APELAÇÃO CÍVEL. “AÇÃO DE RECONHECIMENTO [DE] SOCIEDADE CONJUGAL DE FATO (UNIÃO ESTÁVEL) C/C NULIDADE DE PARTILHA REALIZADA COM NOVA PARTILHA DE BENS E PEDIDO DE REGISTRO DA DISCUSSÃO NAS MATRÍCULAS IMOBILIÁRIAS”. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA.

(TJPR - 12ª Câmara Cível - 0003076-13.2017.8.16.0035/2 - São José dos Pinhais -  Rel.: DESEMBARGADOR ROGÉRIO ETZEL - EDUARDO AUGUSTO SALOMAO CAMBI -  J. 26.04.2023).

 

 

Jurisprudência na Íntegra

DIREITO DAS FAMÍLIAS. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS. RECONHECIMENTO JURÍDICO. APELAÇÃO CÍVEL. “AÇÃO DE RECONHECIMENTO [DE] SOCIEDADE CONJUGAL DE FATO (UNIÃO ESTÁVEL) C/C NULIDADE DE PARTILHA REALIZADA COM NOVA PARTILHA DE BENS E PEDIDO DE REGISTRO DA DISCUSSÃO NAS MATRÍCULAS IMOBILIÁRIAS”. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA.

(1) ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. RESTABELECIMENTO À APELANTE. INVIABILIDADE. PRESENTES ELEMENTOS A EVIDENCIAR A FALTA DOS PRESSUPOSTOS LEGAIS.(2) OFENSA AO PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. NÃO ACOLHIMENTO. POSTULADO NÃO CONTEMPLADO PELO ATUAL ORDENAMENTO JURÍDICO. NULIDADE INEXISTENTE.(3) HERMENÊUTICA JURÍDICA. FORÇA CRIATIVA (NORMATIVA) DOS FATOS SOCIAIS (EX FACTIS JUS ORIUTUR). PLURALISMO JURÍDICO. HETEROGENEIDADE SOCIAL. DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. VIRADA DE COPÉRNICO. JURISPRUDÊNCIA COMO FONTE DINÂMICA DO DIREITO. PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE. PROMOÇÃO DOS VALORES ÉTICOS. MÁXIMA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS-FUNDAMENTAIS. (4) ENTIDADES FAMILIARES SIMULTÂNEAS. EVOLUÇÃO DO DIREITO DAS FAMÍLIAS. MONOGAMIA NA ORDEM JURÍDICA COMPREENDIDA COMO VALOR SÓCIO-CULTURAL RELEVANTE, NÃO COMO PRINCÍPIO JURÍDICO ESTRUTURANTE DO DIREITO DAS FAMÍLIAS. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO DOUTRINÁRIO Nº 04 DE 2022-2023 DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA (IBDFAM). EFEITOS JURÍDICOS ADEQUADOS À REALIDADE FÁTICA-AFETIVA. CONFORMIDADE COM A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. ORIENTAÇÃO Nº 123/2022 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). APLICAÇÃO PELOS TRIBUNAIS DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. DOCUMENTOS HÁBEIS E DEPOIMENTOS UNÍSSONOS ATESTANDO A CONCOMITÂNCIA E MANUTENÇÃO FINANCEIRA DAS FAMÍLIAS. BOA-FÉ OBJETIVA. FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS. COEXISTIBILIDADE, ESTABILIDADE, OSTENTABILIDADE E PUBLICIDADE DEMONSTRADAS. AQUIESCÊNCIA DOS COMPONENTES DAS RELAÇÕES FAMILIARES SOBRE A CONDIÇÃO DE CADA UMA DAS MULHERES (CÔNJUGE E COMPANHEIRA). CONVÍVIO FAMILIAR HARMÔNICO ENTRE AS FAMÍLIAS DURANTE DÉCADAS. ARRANJO FAMILIAR CONSENTIDO PELAS PARTES DAS MÚLTIPLAS RELAÇÕES AFETIVAS. DECISÃO JUDICIAL, NO PONTO, MODIFICADA.(5) PARTILHA DOS BENS AMEALHADOS NA COEXISTÊNCIA DAS FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS. ESFORÇO DIRETO DA APELANTE COMPROVADO. EXERCÍCIO REGULAR DE TRABALHO NA EMPRESA DO COMPANHEIRO ENTRE OS ANOS DE 1981 A 2008. FATO INCONTROVERSO. DEPOIMENTOS DE TESTEMUNHAS. TRIAÇÃO DO PATRIMÔNIO. LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA.(6) RECURSO CONHECIDO E, PARCIALMENTE, PROVIDO.

1. Havendo elementos suficientes no sentido de que a Autora não preenche os pressupostos legais, é inviável o restabelecimento, a ela, do benefício de justiça gratuita, devidamente revogado na sentença recorrida.

2. O Código de Processo Civil de 2015, ao contrário do CPC de 1973 (art. 132), não contemplou o princípio da identidade física do juiz; com efeito, não há de se cogitar de nulidade processual, em razão de ter sido o feito redistribuído a outra Vara (supervenientemente criada e competente), cujo Magistrado titular, sem participar ativamente na instrução probatória, proferiu adequadamente a sentença.

3. A realidade das famílias simultâneas reclama uma atenção especial do Poder Judiciário, com um viés mais sensível à dinâmica da sociedade, já que compreensão da pluralidade e da heterogeneidade das famílias se modifica com a complexidade dos fatos sociais, que também possuem força criadora (normativa) de direitos, como emerge da máxima ex factis jus oriutur. Caso contrário, o Direito não se comunicaria com a realidade social, pois as injustiças somente podem ser percebidas no domínio da experiência ordinária da vida, que, além de impregnada de consensos, condiciona o agir social e jurídico. O mundo da vida e a experiência social devem ser percebidos e acolhidos pelo Direito, notadamente pela jurisprudência, que, por ser também fonte jurídica, permite que os fatos relevantes retroalimentem a constante evolução na intepretação e na aplicação do Direito, voltada à construção de uma hermenêutica que consagre o princípio da primazia da realidade, a promoção dos valores éticos e a máxima proteção dos direitos humanos-fundamentais (Virada de Copérnico). Literatura jurídica.

4. A Constituição Federal de 1988 rompeu com o modelo institucionalizado da família nuclear, matrimonializada, hierarquizada e patriarcal, tendo adotado a concepção sócio-cultural, funcional, pluralista, democrática e eudemonista, caracterizada pelo afeto recíproco, a consideração e o respeito mútuo, estando voltada à plena realização e felicidade de seus membros. Interpretação do Preâmbulo (“sociedade pluralista”) e não-reducionista do artigo 226 da Constituição Federal. Precedente do Supremo Tribunal Federal (ADI 4.277/DF).

5. No contexto da interpretação extensiva e não-reducionista do rol (meramente exemplificativo) do artigo 226 da Constituição Federal, e baseado no princípio da boa-fé objetiva, devem ser reconhecidos efeitos jurídicos aos arranjos familiares não-monogâmicos presentes em famílias paralelas ou simultâneas, a partir da compreensão da monogamia como um valor sócio-cultural relevante, e não como um princípio jurídico estruturante do Direito das Famílias. Exegese dos artigos 226 da Constituição Federal, 1.723, § 1º, e 1.727 do Código Civil. Literatura jurídica. Aplicação do Enunciado Doutrinário nº 4 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) – 2022/2023, pelo qual a “constituição de entidade familiar paralela pode gerar efeito jurídico”. Precedente deste Tribunal de Justiça.

6. O Supremo Tribunal Federal, no RE 1.045.273/SE, consolidou a Tese de Repercussão Geral nº 529, pela qual a “preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro”.

7. Entretanto, de acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que precisa ser levada em consideração pelos juízes latino-americanos (cf. arts. 4º, par. ún., e 5º, § 2º, da Constituição Federal e 1º, inc. II, da Resolução nº 123/2022 do Conselho Nacional de Justiça, bem como pela jurisprudência do STF – v.g., ADPF 635-MC/RJ), a dinâmica da vida não pode ser compreendida restritivamente. A visão do direito à vida abrange uma dimensão positiva que atribui aos Estados, integrantes do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a necessidade de adotar medidas adequadas para conferir a máxima proteção ao direito fundamental à vida digna. Também é dever jurídico dos Estados-partes conferir aplicação progressiva aos direitos humanos sociais. Exegese do artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Consagração da proteção indireta de direitos sociais mediante a proteção de direitos civis. Interpretação evolutiva do direito.

8. A Corte IDH considera que os direitos à seguridade social e a uma vida digna estão interligados, situação que se acentua no caso dos idosos. A Corte IDH indicou que a ausência de recursos econômicos, causada pelo não pagamento das pensões de aposentadoria, gera diretamente no idoso um comprometimento de sua dignidade, porque nesta fase de sua vida a pensão constitui a principal fonte de recursos econômicos para resolver suas necessidades primárias e elementares como ser humano. Deste modo, a afetação do direito à seguridade social pela falta de pagamento dos referidos reembolsos implica angústia, insegurança e incerteza quanto ao futuro de um idoso devido à eventual falta de recursos econômicos para a sua subsistência, uma vez que a privação de uma renda acarreta intrinsecamente restrições no avanço e desenvolvimento de sua qualidade de vida e de sua integridade pessoal. A Corte lDH afirma, ainda, que o direito à vida digna é fundamental na Convenção Americana, pois sua salvaguarda depende da realização dos demais direitos. Ao não respeitar este direito, todos os outros direitos desaparecem. Precedente da Corte IDH. Caso Associação Nacional de Desempregados e Aposentados da Superintendência Nacional de Administração Tributária (ANCEJUB-SUNAT) vs. Peru. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 21-11-2019.

9. Não obstante os acórdãos em julgamento de recursos extraordinários repetitivos tenham caráter vinculante (art. 927, inc. III, do Código de Processo Civil), é possível que, excepcionalmente, o juiz ou o tribunal afaste o precedente obrigatório mediante a técnica conhecida como distinção ou distinguishing, ao explicitar, de maneira clara e precisa, a situação material relevante e diversa capaz de afastar a tese jurídica (ratio decidendi). Aplicação dos artigos 489, § 1º, inc. VI, do Código de Processo Civil (a contrario sensu) e 14 da Recomendação nº 134/2022 do CNJ.

10. Famílias simultâneas ou paralelas se caracterizam pela circunstância de uma pessoa que, ao mesmo tempo, se coloca como membro de duas ou mais entidades familiares. Todavia, o reconhecimento jurídico destas famílias – resultantes da coexistencialidade e desde que fundadas na estabilidade, ostensibilidade, continuidade e publicidade – não se confundem com a situação dos relacionamentos clandestinos, nem com as relações afetivas casuais, livres, descomprometidas, sem comunhão de vida, atentatórias da dignidade, desonestas ou desprovidas de boa-fé em sentido objetivo.

11. No caso concreto, devem ser observadas as suas peculiaridades, em que não há vício de vontade (coação) de F., que, embora tenha estabelecido união estável com J. desde 1972, celebrou casamento com L. em 1974, vindo a se separar, de fato, desta no ano de 1996. Aliás, restou demonstrado que ele teve filhos com ambas as mulheres, as quais não apenas tiveram conhecimento da existência uma da outra, mas também viveram, por décadas, um arranjo familiar público, contínuo, duradouro, tendo inclusive criado seus filhos juntos e em harmonia com a pluralidade das relações afetivas estabelecidas pelas famílias. Circunstâncias que se amoldam com a máxima proteção do direito humano à vida digna, em conformidade com precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos [Caso Associação Nacional de Desempregados e Aposentados da Superintendência Nacional de Administração Tributária (ANCEJUB-SUNAT) vs. Peru.] de caráter obrigatório e vinculante para o Estado Brasileiro, conforme julgado do STF (ADPF nº 635-MC/RJ). Exegese dos artigos 62.1 e 68.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos (ratificada em 29/09/1992 e promulgada pelo Decreto nº 678/1992 e pelo Decreto nº 4463, de 08/11/2002).

12. O patrimônio, construído na constância da coexistencialidade das famílias simultâneas, deve ser partilhado com a apelante, que demonstrou ter trabalhado, por mais de duas décadas, em uma das empresas do companheiro, sendo reconhecida pelos funcionários como “gerente” e “proprietária”, fato, aliás, não controvertido ela apelada. O não reconhecimento do esforço – direto e indireto – comum da companheira (ora recorrente) daria ensejo ao enriquecimento sem causa, razão pela qual, mesmo que afastada a configuração de entidades familiares simultâneas, ad argumentandum tantum, ensejaria a justa partilha dos bens amealhados com seu trabalho (tanto na empresa quanto doméstico), por força da irrefutável caracterização da sociedade de fato. Exegese do artigo 884 do Código Civil. Incidência da Súmula nº 380 do Supremo Tribunal Federal. Precedente do Superior Tribunal de Justiça.

13. Recurso conhecido e, parcialmente, provido, a fim de reconhecer que a união estável havida entre a Autora (J.) e F. teve início em novembro de 1972 (e não somente no dia 16 de fevereiro de 1996), passando ela, então, a ter direito à partilha igualitária do patrimônio constituído neste ínterim, a ser devidamente realizada na fase de liquidação de sentença.