Artigos
Histórico, direitos atuais, perspectivas futuras do reconhecimento e proteção jurídica da família paralela
Autora: Rosana Valéria de Souza Mello.
Advogada Pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela LFG
Membro IBDFAM
Resumo:
Referência: Mello, Rosana Valéria de Souza. Direitos atuais e perspectivas futuras do reconhecimento e proteção jurídica da família paralela. 2016. 4 fls.
Resumo:
O presente estudo traz, de forma sintetizada, o histórico que permeia as famílias paralelas e as uniões estáveis, principalmente a construção cultural brasileira que foi edificada em cima de valores de preconceito, machismo e escravismo, o que foi grandemente repassado pela corte portuguesa que colonizou o Brasil e que reverbera em nossa sociedade até os dias atuais; o preconceito que as famílias paralelas, as mulheres e que os filhos havidos nessas relações enfrentaram e ainda enfrentam; a ausência de reconhecimento e de proteção jurídica da família paralela pelo ordenamento jurídico brasileiro; o dever do reconhecimento da família paralela sob a luz da Constituição Federal e dos princípios basilares; bem como crítica acerca da ausência do reconhecimento e da proteção jurídica.
Palavras-Chave: família paralela, concubinato, direitos, reconhecimento, .
Abstract:
This present study shows, in a synthetic way, the history that permeates parallel families and stable unions, mainly the brazilian cultural construction edified on prejudice, sexism and slavery values, which was larger passed by portuguese court who colonized Brazil and reverberates on our society until nowadays; the prejudice which parallel families, women and children had during this relationships faced and still face; the absence of reconnaissance and legal protection to the parallel family by brazilian legal system; the reconnaissance obligation of parallel family under Federal Constitution and base principles; as a review about the absence of reconnaissance and legal protection.
Keywords: parallel family, concubinage, law, reconnaissance.
O concubinato, que é uma negação às evidências sociológicas, é tão antigo quanto ao início das relações sociais da humanidade (GAGLIANO, 2016, p. 459), pois percebe-se pela História registrada de diversas épocas, sociedades e países, que essas relações “ilegítimas”[1] e “paralelas” sempre são referenciadas.
Na verdade, o concubinato, para chegar até a sua concepção atual, já teve outros contornos ao longo dos tempos.
Na Roma Imperial, o concubinato era considerado a convivência de pessoas que não eram casadas com a chancela da Igreja Católica. (GAGLIANO, 2016, p. 410)
Ganham destaque os padres e até papas, como por exemplo o Papa Alexander VI, o Papa Bórgia, que seus relacionamentos amorosos e sexuais paralelos às atividades da Igreja e de seu casamento, o que foi fortemente reprimido pela Igreja haja vista a ameaça ao patrimônio do clerical, bem como o escândalo.
No Brasil, o concubere[2] foi trazido com os costumes da sociedade Portuguesa ao tempo da colonização, conforme a carta[3] do Padre Manuel da Nóbrega enviada para o Rei de Portugal, quando inspirados pelo espírito aventureiro, os portugueses - que boa parte das vezes tinham matrimônio estabelecido no país de origem com mulheres ricas, brancas e de família com grande influência - mantinham no Brasil relacionamentos paralelos com as índias que aqui se encontravam, perpetuando assim a com as suas proles e miscigenando os povos.
O mesmo se aplica às negras na época da escravidão brasileira, quando os homens poderosos que tinham um casamento arranjado e de interesse com suas esposas – mulheres brancas que originavam de família rica e poderosa - com a finalidade de terem filhos “legítimos” para perpetuação e continuação de seu patrimônio, enquanto mantinham relacionamentos sexuais e amorosos com as negras, que tinham filhos chamados de “ilegítimos” e “bastardos”, os quais eram invisíveis aos olhos da sociedade e da família.
Nesse gancho, impende salientar que essas mulheres invisíveis ao ordenamento jurídico eram chamadas de “teúdas e manteúdas” [4] – dentre outros termos pejorativos - que quer dizer “tida e mantida”, sendo a nítida expressão de posse de um homem sobre a mulher.
A verdade é que a família paralela ganhou contornos de marginalidade ao longo da História, sendo motivo de vergonha, sem nenhum espeque ou reconhecimento jurídico, a qual muitas vezes era e é de conhecimento da sociedade e da esposa “legítima” que simplesmente se cala e anui a prática machista, justamente porque foi criada numa sociedade patriarcal, tendo vivenciado essa experiência na sua família de origem, considerando até normal.
Os filhos havidos desses relacionamentos, assim como suas mães, eram invisíveis, não tinham nenhum direito afetivo, patrimonial, vivendo à margem da família “legítima”, sendo motivo de vergonha, vivendo a desumanidade, eram tratados como sub-humanos - como se existisse categorias de humanos -, carregando o fardo de ser um filho “bastardo”.
Na doutrina, esse silêncio foi rompido em 1961 pela obra “O concubinato no Direito” de Edgard de Moura Bittencourt (TARTUCE, 2016, p. 314). A partir dai, a doutrina passou a enxergar a família paralela, apesar de continuar negando-lhe o amparo jurídico.
Como dito anteriormente, o concubinato já teve várias faces e, em meados do século XX, não era apenas o relacionamento extraconjugal, mas também era considerado concubinato os relacionamentos que, mais tarde, viriam a ser conhecidos como uniões estáveis.
Antes do reconhecimento da união estável como entidade familiar pela atual Carta Magna, os direitos e efeitos da dissolução dessa união era aplicada de forma assombrosa no ordenamento jurídico, ao passo que na dissolução dessas uniões estáveis que eram conhecidas como concubinatos, a mulher - que era estigmatizada como “desonesta” pois não era casada na Igreja - no ato da separação poderia pleitear uma indenização conhecida por “preço da carne”, sendo uma forma de indenizar essa mulher que teve relações sexuais com o homem durante aquele relacionamento “ilegítimo”, sendo tratada como prostituta.
Posteriormente, a união estável ainda o estigma do concubinato, o ordenamento jurídico brasileiro reconheceu o direito dessa mulher separada de ser indenizada pelos serviços domésticos prestados durante aquela convivência com o homem, tratando a mulher que vivia em união estável como empregada doméstica. (PEREIRA, 2003, p. 274)
Atualmente, união estável e concubinato não mais se confundem pois, ao contrário da união estável, o concubinato ainda não é reconhecido como entidade familiar pelo ordenamento jurídico. (TARTUCE, 2016, p. 329)
Nesse diapasão, o atual Código Civil tratou de disciplinar no art. 1.727 o conceito do concubinato como “relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.”
Assim, resta nítido que concubinato decorre de uma relação entre pessoas legalmente impedidas de se casarem, podendo ser, inclusive entre pessoas do mesmo sexo, de acordo com o atual ordenamento jurídico. Impende salientar que não configura concubinato se separados de fato.
Logo, o concubinato, embora não seja reconhecido como entidade familiar pelas legislações e jurisprudências atuais, é reconhecido como uma família paralela por alguns doutrinadores, tal qual Rodrigo da Cunha Pereira, Maria Berenice Dias, Rodolfo Pamplona Filho e Pablo Stolze Gagliano.
O entendimento majoritário que ainda paira sobre a sociedade acerca dos direitos do concubino[5] é de que ele não possui qualquer direito de natureza alimentar, indenizatória, previdenciária ou sucessória, sendo aplicado o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, de que os concubinos têm direito apenas aos efeitos da Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, que assegurou a partilha dos bens adquiridos sob o esforço em comum, esforço esse que ajudou decisivamente na formação do patrimônio, sendo vedado o enriquecimento sem causa, incidindo assim a Teoria da Sociedade de Fato (e não uma sociedade de afeto, a qual foi a intenção das partes durante o relacionamento), em detrimento da Teoria da Sociedade de Afeto, e não produzindo os efeitos decorrentes de uma união estável ou de qualquer direito familiar. (GAGLIANO, 2016, p. 415 - 416)
Inobstante isso, os filhos havidos dessa relação paralela possuem todos os direitos frente aos seus genitores no que se refere ao nome, reconhecimento civil, relacionamento afetivo e convivência, alimentos, bem como que possui todos os direitos sucessórios, sendo vedado qualquer tratamento preconceituoso, discriminatório ou desigual pois, de acordo com o art. 227, § 6º, da atual Constituição Federal “os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”, texto que foi reproduzido pelo art. 1.596 do Código Civil em vigor, consagrando o princípio da igualdade entre os filhos.
Entretanto, no que tange ao reconhecimento da família paralela como sociedade de afeto, vale salientar que existe uma corrente moderna que pleiteia pelo reconhecimento jurídico dessas famílias, reconhecendo direitos até hoje negados, justamente pelo pluralismo das famílias estampado no art. 226 e incisos da Constituição Federal de 1988, bem como que aplicando os princípios basilares tão reverenciados hoje, tal qual o princípio da solidariedade, do pluralismo familiar, da não-intervenção no trato familiar, eudemonismo, afeto, socioafetividade e da dignidade da pessoa humana, em detrimento do princípio da monogamia, que é um princípio que potencializa a marginalização da família paralela, que é usado como instrumento para excluí-la (DIAS, 2016, p. 46).
O fato é que a sociedade vive em constantes mudanças, devendo a legislação e a jurisprudência acompanharem as alterações sociais para recepcionarem cada vez mais as diversas formas familiares, devendo amparar a família paralela (que há tanto tempo existe) no que tange aos aspectos patrimoniais, pois questiono se seria justo o Estado interferir de forma que negue o reconhecimento de direitos à uma família paralela que possui filhos, que muitas vezes possui convivência notória e pública, que está envolvida numa relação amorosa, afetiva e solidária há décadas, que em alguns episódios até possui a ciência do cônjuge havendo até a convivência entre essas duas famílias.
Além disso, negar o reconhecimento jurídico e os direitos dessas famílias é justamente incentivar, desresponsabilizar o agente infiel, é ser conivente à prática do adultério, é justamente enriquecer-se indevidamente a custo de outrem (aplicação da Súmula n. 380 do STF), o que é muito conveniente para quem elabora as leis, vez que em sua maioria, são homens. (DIAS, 2016, p. 142-143)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CENTRO CULTURAL LUSO BRASILEIRO. Vida e Obra de Padre Manuel da Nóbrega. Apud VAT, Frei Odúlio Van der. Disponível em: http://cclbdobrasil.blogspot.com.br/2011/03/vida-e-obra-de-padre-manuel-da-nobrega.html. Acesso em: 28 abr. 2016.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2016.
GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de dirieto civil, volume 6 : direito de família : as famílias em perspectiva constitucional / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. – 6. ed. rev. e atual. de acordo com o novo CPC. – São Paulo : Saraiva, 2016
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Da união estável. In: DIAS, Maria Berenice; _____ (coords.). Direito de família e o novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v. 5 : Direito de Família / Flávio Tartuce. – 11. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016.
[1] É necessário se referenciar às palavras “ilegítimas (os)”, “legítimos”, “espúrios”, “filhos adulterinos”, “bastardos”, “teúdas”, “manteúdas”, “mulher desonesta”, sempre entre aspas, haja vista o ranço preconceituoso que carregam.
[2] A palavra “concubere”, em latim, significa “compartilhar o leito”. Deu origem à palavra concubinato.
[3] Com base no texto de Vat (apud Centro Cultural Luso Brasileiro), "Quando em 1549 desembarcaram em Porto Seguro os primeiros jesuítas, encontraram a terra toda revirada por muitas inimizades. Graças, porém, à sua intervenção, muitos se reconciliaram publicamente com a igreja. O Padre Nóbrega continuou ali por alguns meses, dedicando-se às obras do apostolado e da caridade. Visitando os povos vizinhos desta terra, diz o Jesuíta, confessei a muitos e grande fruto se fez, porque muitos deixaram os pecados e tomaram por mulheres as concubinas ou as abandonaram, posto que entre estes se vêem muitos cristãos que estão aqui no Brasil, os quais têm não só uma concubina, mas muitas em casa, fazendo batizar muitas escravas sob o pretexto do bom zelo e para se amancebar com elas, cuidado que por isso não seja pecado. E de par com estes estão muitos religiosos, que caem no mesmo erro, de modo que podemos dizer Omnes commixti sunt inter gentes et didicerunt opera eorum. Nesta terra , todos, ou a maior parte dos homens, têm a consciência pesada por causa dos escravos que possuem contra a razão, além de que muitos que eram resgatados aos pais não se isentam, mas ao contrário ficam escravos pela astúcia que empregam com eles, e por isso poucos há que possam ser absolvidos, não querendo abster-se de tal pecado nem de vender um a outro, posto que nisto muito os repreendo, dizendo que o pai não pode vender o filho, salvo em extrema necessidade, como permitem as leis imperiais. E nesta opinião tenho contra mim o povo e também os confessores daqui. E assim Satanás tem de todo presas as almas desta maneira, e muito difícil é tirar este abuso, porque os homens que aqui vêm não acham outro modo senão viver do trabalho dos escravos, que pescam e vão buscar-lhes o alimento; tanto os domina a preguiça e são dados a coisas sensuais e ócios diversos, e nem curam de estar excomungados, possuindo os ditos escravos. Pois que nenhum escrúpulo fazem os sacerdotes daqui, o melhor remédio destas coisas seria que o Rei mandasse inquisidores ou comissários para fazer libertar os escravos, ao menos os que são salteados, e obrigá-los a ficar com os cristãos até que larguem os maus costumes do gentio já batizado, e que a nossa Companhia houvesse deles cuidado; amestrando-os na fé, da qual pouco ou nada podem aprender em casa dos senhores, e antes vivem como gentios, sem conhecimento algum de Deus."
[4] Teúda e Manteúda foram expressões muito usadas no romance “Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado, para se referir às concubinas que os homens tinham à época. O livro retrata bem a sociedade patriarcalista, desigual e arraigada de machismo do ano 1925, em Ilhéus/BA.
[5] Ao concluir o artigo, percebi que a palavra “concubino” sequer é reconhecida pelo dicionário do programa Word, o qual escrevo esse artigo, sendo reconhecido apenas a palavra “concubina”, como se apenas a mulher pudesse ser a amante, a outra, comprovando assim a desigualdade e o ranço do estigma machista.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM